Um ponto descontínuo entre o africano e o cristão em “Buza ka yehova”

Aqui é mister, prior a qualquer seguimento argumentativo, uma explanação que possa trazer luz no título que dá caminho a esse ensaio. Entende-se ‘o africano’ não como uma individualidade com origens de um lugar físico chamado África, nem se trata de uma colectividade de indivíduos conscientes de si mesmo oriundos ou viventes de um lugar físico chamado África, mas, pelo contrário disso, trata-se ‘o africano’, como ‘o cristão’, como cultura, onde, por dentro, residem as crenças, a religião, hábitos, e outros saberes que moldam e caracterizam um determinado povo. Essa justificação corrobora com o facto de haver africanos cristãos, individualidades de origem africana mas que professam a religião cristã. Essa mescla, por mais que possa parecer inconcebível, ela é justificável porque cristianismo é uma religião, e, o que assusta a muitos doutores de religiões e, em particular, a africanistas, é que uma religião é, acima de tudo, uma expressão cultural porque, diz-se, ela vem para responder os anseios de um determinado povo, só que, cada povo tem seus próprios anseios devido às condições materiais e espirituais em que estão submetidos.
A transmutação, sem auscultação, de certas religiões para outras regiões parece, em primeiro lugar, algo agressivo, digno de povos imperialistas, como o Ocidente na era de cristianização do mundo, mas essa historicidade sobre a expansão do cristianismo pelo mundo e, em particular, em África, não é aqui o ponto focal. O que interessa é que a imposição do cristianismo em África e, em especial, Moçambique criou focos de litígios, descontinuidade e, muito pouco, de convergência. Um exemplo de convergência é a inexistência de um ser imaterial cujos poderes são absolutos, nesse caso Deus cristão. Essa convergência vê-se claramente quando curandeiros falam em nome de Deus, e dizendo que trabalham pela sua graça.
Contudo, há também, óbvio, vários pontos de descontinuidade entre o africano e o cristão, porque esse cristianismo como religião carrega uma cultura de onde ela se desenvolveu como tal. Então há, aqui, um conflito entre a cultura africana e a cultura alheia que vê embarcada, de modo oculto, no cristianismo. E, nesse cristianismo, há muito de cultura europeia.
Também, apraz referir que o mesmo cristianismo saindo de Europa para África, acabou ganhando muito de África, com um exemplo claro e objectivo dos Maziones, que apesar de rezar a Deus cristão, acabam incorporando aspectos africanos, como o respeito pelos espíritos, antepassados em que, no lugar de os combater, fazem-lhes alguma reverência caso seja necessário.
Um exemplo de descontinuidade entre o africano e o cristão é levantado pela música de João Bata, intitulada “Buza Ka Yehova”, cujo significado é “Pergunte a Jeová (partindo do pressuposto que, em alguns casos, Jeová e Deus são sinónimos, em Moçambique,)”. Em geral, a música é uma série de questionamentos, lamentações pelo que de mal existe no mundo, mesmo havendo um ser mais do que ser infinitamente poderoso que pode acabar com o sofrimento do mundo. Essas questões são sumarizadas num dos últimos versos da mesma composição, em que, em desespero, questiona: “Kassi Ukwini Tlelu lakona” (Afinal, de que lado estás/ onde estás?). Uma indagação com alargada veemência dentro do seu peito sobre a localização desse ser mais que ser, e, assim sendo, deixa-nos uma ideia clara da sua inoperância ou suposta inoperância.
A música, em si, é repleta de informação interessante, e uma das perguntas é o cerne desse ensaio, que levanta e demonstra esse dito ponto de descontinuidade, onde, partindo da questão levantada na música, se fica sem uma resposta fácil sem se desfazer de um dos lados, ou se desfaz do africano ou do cristão.
“A matsalwa mali lweyi angafa ata pfuka, se, a lweyi angatxinga vassati va vanu vataku yini ka mafa-vuka” “As escrituras dizem que quem morreu irá ressuscitar, e esse que praticou levirato o que irá dizer ao morto-acordado (ressuscitado)” Em Moçambique, levirato (ainda há sororato “quando é um homem que casa com duas irmãs” (Batalha, 2004:134)) é uma prática que carrega o nome “Ku txinga”, não apenas a nomenclatura que é diferente, mas a própria prática em si difere da prática dos israelitas.
Em Israel, o homem era obrigado a casar a mulher do seu falecido irmão, o que difere subtilmente da prática em Moçambique, onde o homem é obrigado a ter relações sexuais com a mulher do seu falecido irmão, como um acto de purificação, não que signifique que esse se torne, necessariamente, a sua mulher. A perspectiva que se nutre, nos meios da nova sociedade moçambicana, sobre a prática do levirato é enviesada, ou, no mínimo, rechaçada, contudo, Batalha (Antropologia: perspectiva holística, 2024), relembra as razões de carácter social que levaram à prática desse tipo de casamento porquanto “num sistema de troca entre linhagens, isto é uma forma de garantir a protecção das trocas: quando um marido ou uma mulher morrem são imediatamente substituídos por um irmão ou irmã, respectivamente, garantindo a continuidade das trocas entre as duas linhagens” (p. 134), como também, tanto no sororato como levirato os filhos não crescem numa família (com um pai ou mãe) estranha.
A condição da dúvida se dispõe: o que faz com que, mesmo não sendo uma prática estranha no mundo, e que é até referido no antigo/velho testamento, essa prática é diabolizada? A única resposta, para esse facto, está centralizada no eurocentrismo, e que tudo começa na Roma de Constantino quando se converteu para o cristianismo. Devido aos estudos do antropólogo Jack Goody sobre a família e o casamento na Europa, sabe-se que houve várias reformas e profundas.
Por exemplo, ele refere que a adoção, o casamento de viúvas, o casamento entre primos, o
divórcio, o concubinato e o levirato foram proibidas. Essas proibições contradiziam, em certa medida, o velho testamento e até o próprio direito romano. Isso revela que esse cristianismo professado em África é, profundamente, europeu. Pois, entre europeus, culturalmente, essa prática é profundamente difícil de aceitar, como explica batalha, “levirato, embora mais fácil de compreender pelos europeus, uma vez que se trata de um tipo de casamento descrito na bíblia, não deixa de ser estranho” (p. 134).
O que sucede é que a mesma igreja ocidental que “estranha” o levirato, fala de ressuscitação dos mortos com a vinda de Cristo. No confessionário, revelo que ainda me é difícil compreender essa ideia de ressurreição, contudo, faz parte da crença cristã: “Quem morreu vai ressuscitar”. Como natural, essa crença foi levada para África, e acontece a colisão entre as duas realidades. “Se o morto acordar, o que é que esse txingou vai dizer ao ressuscitado?”, questiona João Bata, porque, refresque-se a memória, parte-se de um pressuposto em que há aqui uma cisão entre os africanos e cristãos, onde, nos olhos dos segundos, a prática de levirato é estranha, mas mesmo assim é uma prática social, na realidade do africano.
Essa questão de João Bata na canção “Buza Ka Yehova” denuncia um pouco de “contraproducência” que existe entre o africano e o cristão. Se o africano vê o levirato como uma prática vantajosa, e o cristão proíbe a mesma, então qual solução se descobre para esse litígio?
Conforme anteriormente descrito, não é de uma solução fácil, a não ser, no final, abolir essa prática ou esquecer, por momentos, que se trata de um pecado. Isso significa deixar de lado um dos lados. No fundo, essa música também traz um pouco disso, a fusão de duas culturas completamente distintas, e suas consequências, onde, em casos como esses, não se sabe onde recorrer. Debates não cessam sobre várias temáticas, e uma delas é a do levirato, mas não há convergência, outros olham como tradicional e outros como uma aberração: essa confusão visceral é um resultado prático dessa fusão.