Quem amaldiçoou o amor?

O labirinto de estradas em Massinga, pontuada por poeira e o cheiro da terra quente, levou-me ao Centro de Apoio a Idosos, um espaço simples, mas impregnado de histórias que, muitas vezes, preferíamos não ouvir. Foi lá que conheci Joaquina, uma mulher de 72 anos, pele enrugada pelo tempo e olhar vazio, mas com uma história tão pesada que me sufocou enquanto ela falava.
Sentada numa cadeira de madeira, com um lenço amarrado na cabeça, Joaquina contou-me sobre os dias mais sombrios da sua vida. “O meu filho tentou matar-me, senhor jornalista. Ele dizia que eu era uma feiticeira, que eu tinha amaldiçoado a sua vida. Mas eu sou apenas uma mãe…” A voz dela tremia, e os olhos, húmidos, carregavam uma mistura de dor e vergonha.
Joaquina teve quatro filhos, mas apenas um sobrevivia. Esse filho, que em tempos foi o centro do seu mundo, trabalhava na África do Sul, onde procurava o sustento que nunca chegou. Segundo ele, as suas constantes desgraças eram culpa da mãe. “Dizia que eu era a razão pela qual ele não prosperava, que eu o tinha enfeitiçado para não ter sorte no trabalho nem em nada.”
No princípio, as palavras eram cortantes, mas ainda suportáveis. “Chamava-me coisas feias… dizia que eu era má, que devia morrer. Eu fingia que não ouvia, mas, por dentro, doía tanto.” A violência psicológica deu lugar à física. Joaquina relatou que, quando o filho voltava de madrugada, embriagado, obrigava-a a ficar de pé durante horas enquanto ele a insultava. “Uma vez, ele atirou-me um prato cheio de comida à cara e disse: ‘Não precisas disto, feiticeira!’ Depois disso, parou de me dar de comer.”
O ponto mais baixo chegou numa noite fria. Após uma consulta com um curandeiro, o filho voltou com um olhar de ódio que Joaquina nunca tinha visto antes. “Disse-me que o curandeiro tinha-lhe explicado tudo: que eu tinha lançado feitiços para ele não arranjar mulher, para ele ter disfunção sexual e não sair de casa. Disse que eu queria controlá-lo para sempre.”
Foi nessa noite que ele tentou matá-la. “Agarrou numa faca e veio para cima de mim. Se não fosse o vizinho que ouviu os meus gritos, eu não estaria aqui para contar esta história.” Joaquina foi levada para o centro por esses vizinhos, mas o trauma ficou para sempre. Ela chora à noite, perguntando a Deus onde errou como mãe.
Enquanto ouvia Joaquina, sentia-me esmagado por uma questão: como pode alguém tentar matar a mulher que lhe deu a vida? Não é apenas a história de Joaquina. A província de Inhambane está repleta de casos semelhantes. Muitos idosos são acusados de feitiçaria pelos próprios filhos, netos ou vizinhos, com base em crenças alimentadas por curandeiros que agem como juízes e carrascos.
Esses curandeiros, que deveriam ser guardiões das nossas tradições, muitas vezes são catalisadores de tragédias. Como é possível que, em pleno século XXI, pessoas recorram a tais práticas para justificar fracassos pessoais? Por que é mais fácil culpar os pais do que assumir responsabilidades? Joaquina não é uma feiticeira. É uma mãe que amamentou, criou, chorou e lutou pelo filho. Mas, no final, tornou-se vítima dele.
Enquanto deixava o centro, a pergunta ecoava na minha mente: quando perdemos a nossa humanidade? Os filhos, que deveriam proteger os pais, agora são os algozes. A tradição, que deveria ser um pilar de união e respeito, tornou-se uma arma letal nas mãos de quem não entende o seu verdadeiro valor.
E quanto aos curandeiros? Não têm responsabilidade alguma neste ciclo de violência? Até que ponto eles contribuem para a construção de uma sociedade mais justa? Não deveriam ser educadores do amor e do respeito ao próximo, em vez de perpetuarem o ódio e a destruição de laços familiares?
Joaquina é apenas uma entre milhares. A violência contra os idosos é uma ferida aberta que denuncia o nosso fracasso enquanto sociedade. Somos um povo que canta o amor, mas que o mata em silêncio nas casas de Massinga, Vilankulo ou Morrumbene.
Ao regressar, as palavras de Joaquina ecoavam na minha mente: “Eu só queria que ele me chamasse de mãe outra vez.” E eu pergunto a cada um de nós: onde está o amor que juramos às nossas mães e pais quando eles nos carregavam no colo? Quando perdemos a capacidade de os ver como os seres que mais nos amaram?
Talvez ainda haja tempo para nos reencontrarmos com a humanidade perdida. Porque, no fim, o que resta é a pergunta que Joaquina nunca deixou de se fazer: “Mãe, não me mates mais.” Mas quem, realmente, matou quem?