Namorar Gurué: Entre Trilhos, Amores e Desilusões

Parte I : “Operação Gurué – Entre Arranhões, Emoções e Adrenalina”; Chego ao parque de transportadoras interprovinciais, na cidade de Nampula, por volta das seis horas da manhã. De pasta nas costas e ânimo no coração sigo a minha jornada com apenas um objectivo: conhecer a histórica cidade de Gurué. Desde muito cedo, ainda na escola primária, ouvi falar dos largos campos de chá nas margens do Rio Licungo e nas serras à volta.
Recorrentemente, ao longo dos anos, fui ouvindo falar da cidade de Gurué como um dos celeiros da cidade da Zambézia, mas não só, Gurué sempre chegou aos meus ouvidos e olhos como uma cidade bela e rica que se situa entre verdes colinas no interior daquela província do centro do país. Foi assim que me apaixonei por Gurué mesmo sem a conhecer. Muito clichê isso, eu sei. Mas foi o que aconteceu. Esta paixão cresceu ainda mais quando, através do Alegre Canto da Perdiz, Paulina Chiziane levou-me a conhecer os montes Namúli, terra do José dos montes. Algum dia nesta vida eu tinha de conhecer esta cidade.
390 Quilómetros estavam entre o meu ponto de partida (cidade de Nampula) e o meu destino (Gurué). O mapa do google estimava que a viagem fosse durar, no máximo, seis horas. A experiência dos motoristas e outros colaboradores das transportadoras dizia que em cinco horas mais tardar eu estaria em Gurué. Porque onde desenvolve-se e alimenta-se uma grande paixão, abre-se também margem para grandes desilusões, a primeira tentativa de desiludir o meu amor platónico por Gurué começa aí mesmo, ainda em Nampula. As normas informais asseveram que o carro só sai do parque quando estiver cheio. Da mini-bus (vulgo TNS ou chapinha) desenhada para 15 pessoas, contando com o motorista, espera-se que nela viagem 21 pessoas.
Passam-se trinta, quarenta, sessenta, noventa minutos e o carro não enche e por isso não sai. Não se pode reclamar e nem se pode recorrer a uma alternativa, porque não existe nenhuma alternativa de transporte público que queira fazer o trajecto Nampula-Gurué. Aparentemente não é um trajecto com muito negócio e, por isso, os poucos que permanecem no negócio têm poder absoluto sobre as regras. Às nove horas, três horas depois da minha chegada, quando eu já queria começar a desistir do meu amor por Gurué, vinte e uma pessoas estão a bordo do chapinha e já podemos seguir viagem. Recupero o fôlego e peço perdão a Gurué. Foi um momento de tensão, mas a paixão continua.
O trajecto segue. Andamos a voar, todos em silêncio, ninguém reclama da velocidade, é como se tivesse havido um acordo informal entre o motorista e os passageiros na tentativa de compensar o longo tempo de espera antes da nossa partida. O Problema é que a estrada ficou alheia a esses concertos informais feitos na anuência do silêncio. Eu ia dizer buracos, mas não é esteticamente belo incluir tal palavra num texto de amor. Digamos que os arranhões profundos que a estrada possui, não nos permitem “voar” com tranquilidade. Entre frequentes saltos, solavancos, curvas e contracurvas em plena estrada rectilinear, fomos adoçando a nossa jornada dentro daquele chapa e, nisso, eu já começava a desiludir-me novamente.
Para tentar esquecer a decepção, vou alimentando a minha alma com bela paisagem verde e montanhosa que envelopa o nosso trajecto. É de encher a alma ver os verdes e lindos campos que habitam nestas terras. Ao passar por Alto-Ligonha vejo os resquícios ainda bem presentes das últimas manifestações pós-eleitorais. Restos de um camião incinerado jazem em plena estrada nacional número um. O posto policial e algumas sedes distritais também tiveram o mesmo destino.
Seguimos viagem. À beira da entrada é um pouco do mesmo que vemos em toda a EN1. crianças, adolescentes, mulheres com bebé ao colo, arriscam as suas vidas e um pouco mais para se aproximar de qualquer carro que faça passagem na sua localidade e vender-lhes frutas, verduras, legumes e outras singularidades de cada local.
Chego ao desvio de Nampevo por volta das 13 horas e tenho de deixar o primeiro chapa porque este ia à Quelimane. Ao desviar de Nampevo em direcção ao interior da Província da Zambézia, 90 km separam-me de Gurué. Eu já tinha feito 300, então o que faltava era pouco.
Era praticamente a quarta parte de todo o trajecto, porém, para a minha desilusão e quase desapaixonamento, foi o trajecto mais longo. Entrei num chapa que prometeu me deixar em Gurué dentro de duas horas no máximo. Era eu e mais onze. Faltavam dez para preencher o carro, por isso, a cada pessoa que se encontrava à beira da entrada o carro parava para carregar e descarregar. Era uma lentidão sem fim que foi sento apimentada por novos e mais profundos arranhões que ornamentam a estrada que segue até Gurué. Estão a decorrer obras de reabilitação neste momento, o que já é uma esperança para o futuro, porém, no presente, a experiência dos solavancos e saltitões dentro do carro não passa despercebida. Passadas as duas horas prometidas, o motorista decidiu cumprir a sua promessa e deixou-me. Mas ainda não estava em Gurué, estava na sede do distrito de île, que dista a 65 km de Gurué, ou seja, dos 90 km só tinhamos feito 25.
Ao ser abandonado pelo chapa, alegando não haver passageiros que justificassem a sua chegada a Gurué, eis que sou obrigado a esperar mais uma hora para, às 16 horas, conseguir embarcar a bordo de uma camioneta caixa aberta que me levaria até ao meu destino. A mim e a mais 20, 30 ou 40. Não sei. Éramos muitos e o sistema era o mesmo: pára, carrega, continua, pára, descarrega, continua, esquiva buraco… desculpa, arranhão, … e eu, apaixonado que sou, começo a questionar seriamente o meu amor por Gurué. Não teria sido melhor se eu tivesse mantido esse amor no plano platónico? Será que valia a pena sofrer daquela forma para chegar a Gurué?
Já se passam doze horas desde a hora que eu saí de casa em Nampula até alcançar a cidade de Gurué. Uma escalada dura e que, mais uma vez, vem evidenciar que o turismo interno em Moçambique não está acessível para todos. No regresso à Nampula, a experiência foi similar.
Saí às 8h de Gurué e cheguei às 20h em Nampula. Certamente que se eu tivesse uma viatura particular, ou tivesse condições de alugar uma, eu estaria aqui a narrar uma história totalmente diferente. Mas, para a maioria dos moçambicanos, grupo no qual faço parte, que não tem alternativa a não ser viajar de transportes públicos, estes são alguns dos dramas que desincentivam a realização do turismo interno.
Às 18 horas, com os nervos e desilusão à flor da pele, verdes campos que se estendem em
colinas e um horizonte que dá alento aos olhos e acalma qualquer alma inquieta. Pergunto discretamente a um passageiro do que se tratava aquelas paisagens verdes e, como se de algo vulgar se tratasse, ele responde: são os campos de Chá. Nesse momento esqueço-me tudo o que passei e volto a apaixonar-me por Gurué, uma paixão que eu só teria condições de a viver no dia seguinte.