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Buchane: O lugar onde os segredos são vividos, não explicados

O sol ainda estava escondido no horizonte quando deixei a Vila de Inhassoro naquela madrugada fria. Eram cinco horas, e a brisa suave carregava o perfume da vegetação que cercava o pequeno cruzamento. Estávamos em missão: explorar o coração de Buchane, uma localidade quase mítica, onde o guano, o excremento de morcegos, é extraído e usado como fertilizante. Era trabalho para o programa MOZGROW, da STV, mas a viagem, como descobriríamos, era mais do que uma simples ida ao interior – era um mergulho num universo de mistérios.

Conduzia a viatura acompanhado pelo repórter cinematográfico Félix Jamisse e pelo nosso guia local. O carro cortava a estrada em silêncio, como se respeitasse a quietude daquela hora. O plano era simples: abastecer, seguir viagem e cumprir a pauta. Mas os planos têm o hábito estranho de se reinventarem.

Parei no cruzamento de Inhassoro para abastecer o carro. Era uma rotina sem surpresas: desligar o motor, encher o tanque, pagar e partir. Contudo, quando tentei ligar o carro novamente, o motor recusou-se a responder. Não fez sequer o som de tentativa.

– Parece que o carro perdeu a alma – murmurou Félix, a olhar para o painel inerte.

Liguei imediatamente para o mecânico. Do outro lado da linha, ele tentou tranquilizar-me, sugerindo que o problema fosse elétrico. A recomendação foi clara: chamar um eletricista auto. Segui o conselho e fiz a ligação. O eletricista garantiu que estaria connosco em breve. Contudo, meia hora depois, ao ligar novamente para confirmar, ele deu-me outra notícia:

– Hugo, o carro em que estou avariou. Vou ter de apanhar um Chapa 100. Peço só um pouco mais de paciência.

A paciência estava a ser testada quando o guia local, subitamente alarmado, exclamou:

– Esqueci-me de avisar o líder da comunidade!

Era um erro grave. Ele apressou-se a ligar, e algo mudou naquele instante. Enquanto desligava o telefone, Félix olhou para mim com um misto de convicção e intuição:

– Hugo, tenta ligar o carro outra vez. Algo diz-me que agora vai funcionar.

Não fazia sentido, mas fiz o que ele sugeriu. Rodei a chave, e o motor rugiu com vigor, como se nunca tivesse estado inoperante. Todos nos entreolhámos, sem explicações. Era apenas o início de uma série de acontecimentos que desafiaram a nossa compreensão.

Seguimos viagem, mas o guia trouxe-nos outro aviso, desta vez mais inquietante:

– O líder disse que devemos cobrir os espelhos do carro e não os abrir durante todo o percurso.

– Cobrir os espelhos? – perguntei, confuso.

– É tradição. Protege-nos, mas não posso explicar.

Cobri os espelhos. Durante os 30 quilómetros que se seguiram, o silêncio na viatura era quase palpável. As estradas pareciam mais longas, e o peso do desconhecido pairava sobre nós como uma nuvem densa.

Chegámos a Buchane e fomos recebidos pelo líder local, que nos conduziu até à gruta onde o guano é extraído. Enquanto Félix entrava na gruta com a câmara, fiquei do lado de fora, observando. Era um lugar de contrastes: a natureza exuberante parecia guardar um segredo antigo.

De repente, a vegetação moveu-se. Um movimento serpenteante e rápido chamou a atenção de alguns jovens locais, que murmuraram em citswa:

– Hi yona.

O coração disparou.

– O que é? – perguntei, tentando disfarçar o medo.

– É uma cobra – respondeu um deles, sorrindo. – Mas não se preocupe. Não vai fazer nada.

Eu, que sempre tive pavor de cobras, congelei. Aquele instante pareceu uma eternidade. Mas, seguindo o conselho do jovem, mantive a calma – ou pelo menos fingi. Quando Félix voltou, senti-me como se tivesse sido resgatado de um pesadelo.

Após concluirmos o trabalho, o líder local deu-nos uma orientação clara e firme:

– Não deem boleia a ninguém. Seja quem for.

Havia algo na sua voz que nos deixou sem argumentos. No regresso, passámos por várias pessoas à beira da estrada. Mães com crianças ao colo, jovens com olhares de súplica e até mulheres grávidas. Doeu-me no peito, mas obedeci. Algo maior parecia guiar aquele dia.

Quando finalmente chegámos a Inhassoro, o peso dos acontecimentos ainda pairava sobre nós. A viatura que não ligava, o aviso sobre os espelhos, a cobra e a ordem de não dar boleia – tudo isso parecia interligado de forma que a lógica não conseguia explicar.

Quando a tensão começava a dissipar-se, foi então que o guia decidiu partilhar uma história que nos arrepiou.

– A primeira vez que fui a Buchane, não recebi essa orientação. No regresso, demos boleia a uma senhora. Ela estava na parte de trás do camião de carga. Num certo ponto, o motorista olhou pelo espelho e não viu a senhora. Viu uma cobra
– O quê? – interrompeu Félix, espantado.

– Parámos imediatamente. Ligámos ao líder para contar o que aconteceu. Ele pediu que esperássemos. Poucos minutos depois, a cobra desceu do camião e desapareceu na mata. Desde então, nunca ignoramos as recomendações.

O silêncio voltou a tomar conta do ambiente. As palavras do guia ecoavam nas nossas mentes. Era difícil não ligar a história às nossas próprias experiências daquele dia – o carro que voltou a funcionar, os espelhos cobertos, os olhares de súplica ignorados na estrada

De volta à minha rotina, a história daquele dia não me abandonava. Seriam todos esses episódios mera coincidência? Ou será que há forças, crenças e tradições que transcendem o que a ciência explica?

Moçambique é um país de mistérios. Nas suas paisagens, tradições e silêncios, há verdades que não são ditas, mas vividas. Talvez, no coração de Buchane, tenhamos tocado um desses segredos – um que nos lembra que nem tudo precisa de explicação para ser real.

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