O Preço de um sonho roubado – Quando a infância se torna dívida

Conheci Ana numa tarde abafada, em Jangamo, numa casa pequena e desgastada, onde o tempo parecia ter parado. Estava sentada num canto, com as mãos sobre os joelhos, abraçando-se de forma quase desesperada. A luz que entrava pelas janelas sujas iluminava seu rosto marcado por uma tristeza profunda, mas seus olhos, aqueles olhos, pareciam conter toda a dor de um passado que ela ainda não conseguia deixar para trás.
Era uma jovem de 18 anos, mas a sua alma parecia carregar o peso de uma vida inteira. Ana não me conhecia, mas a necessidade de partilhar sua história era tão grande que ela começou a falar antes mesmo de eu conseguir perguntar. Eu nunca tinha visto alguém com tanto sofrimento dentro de si, como se tudo aquilo tivesse sido engolido sem remédio, sem possibilidade de cura.
“Queria ser enfermeira”, ela começou, quase sem fôlego. As palavras saíam com dificuldade, como se o ar fosse denso demais para que ela conseguisse falar. “Sonhava em ajudar as pessoas. Lembro-me de como adorava a escola, de como as aulas de ciências me fascinavam. Eu sabia que, com esforço, poderia chegar longe. Mas… a minha mãe…” A voz dela vacilou, e ela abaixou a cabeça, como se aquele nome fosse um peso impossível de carregar.
Ela suspirou, e antes que eu pudesse perguntar o que tinha acontecido, as palavras foram saindo, uma após a outra, sem controle. “Ela tinha uma dívida com um homem, com um homem que trabalhava na África do Sul. Ele estava sempre a pedir mais dinheiro, mais dinheiro, até que um dia, ela disse que não tinha como pagar. Foi aí que ela me chamou e… entregou-me.”
A casa onde tudo se passou era um lugar, melhorado para a realidade local, com casa de pedra, furo de água, corrente eléctrica, televisão onde poderia assistir novelas. Mas o cenário se desfazia em segundo plano. O que realmente importava era o que acontecia ali, naquele espaço onde aos 16 anos de idade, Ana foi forçada a ser nada mais do que um objeto. Não um ser humano. Não uma criança.
“A minha mãe falou com ele. Disse que não havia outra maneira e o homem aceitou. Eu não sabia o que fazer. Ela me mandou embora, disse que tudo ia ficar bem, que eu teria uma casa e um marido, e que ele me cuidaria.” Ana parecia perdida no tempo, como se aquelas palavras estivessem sendo ditas pela sua mãe novamente, ecoando na sua memória.
Ela descreveu o homem com um leve estremecer na voz, tentando dissociá-lo da figura de pai que ele nunca seria. Tinha 37 anos. Era alto, com uma cara dura e olhos de quem já viu demais. Tinha uma voz grossa, uma forma de falar que fazia Ana sentir-se como se fosse uma criança insignificante, sem valor. No início, o homem dizia que ela deveria ajudá-lo na casa, que tinha que aprender a ser uma boa esposa. Depois, os “ajuda-me” tornaram-se exigências. E logo, Ana entendeu que nada na vida dela seria uma escolha. Ela tinha se tornado propriedade.
As tarefas eram intermináveis. Limpar, cozinhar, lavar, cuidar da casa. Mas não bastava isso. O homem queria algo mais. “À noite, ele vinha. Fazia coisas com o meu corpo, coisas que eu não queria fazer. Eu não sabia o que fazer. Fiquei com medo. Ele dizia que era a minha obrigação.” As palavras saíam devagar, como se ela estivesse tentando entender o que tinha acontecido consigo, mas não conseguia.
O semblante de Ana já não tinha a juventude e a leveza de uma adolescente. Seus olhos, que antes refletiam sonhos, agora estavam embotados por uma dor que atravessava gerações. Era impossível entender como ela ainda estava ali, tão jovem, mas tão consumida pelo peso daquilo tudo.
“Ele queria mais filhos. Disse que eu não servia para nada, que eu era só uma reprodutora. Quando fiquei grávida, ele ficou furioso porque esperava que eu tivesse mais filhos.” Ana engoliu seco, uma lágrima teimosa escorrendo pelo seu rosto. “E ninguém fez nada. Ninguém. Os pais dele sabiam. Os vizinhos sabiam. E a minha mãe…” Nesse instante, ela parou de falar e olhou para mim, como se procurasse alguma forma de compreensão, de aprovação. Mas não havia nada que eu pudesse dizer. Eu não tinha palavras. Eu não tinha nada para dar.
O silêncio se fez pesado. A sala estava abafada, mas o calor parecia vir de dentro dela, daquilo que ela tinha vivido, de tudo o que não tinha sido capaz de viver. Ana, a menina que sonhava ser enfermeira, agora se via como um objeto, como uma mulher que nunca teve o direito de ser apenas quem era.
“Por que você não fugiu?”, perguntei, depois de um longo silêncio. A resposta não veio imediatamente. Ela parecia pesar a pergunta, como se fosse algo tão fora do seu alcance que nem sabia por onde começar.
“Eu não sabia para onde ir. O homem… ele me trancava. Às vezes, eu só queria desaparecer. Mas não podia. As pessoas que viam nada faziam. Diziam que era minha obrigação. Diziam que era assim que as mulheres deviam ser.”
Foi a polícia que, por acaso, encontrou Ana. Não foi um ato de denúncia, mas um acaso, um pequeno milagre. Ela estava com o bebé no colo, visivelmente malnutrida. Alguém, alguém que ainda tinha um mínimo de humanidade, foi até as autoridades. Foi assim que ela foi retirada da casa, mas, por dentro, Ana já estava quebrada. Não havia cura para o que ela tinha vivido.
Enquanto a ouvia, o choque se transformava numa raiva profunda. Como foi possível ninguém ter feito nada? Como foi possível que todos, na comunidade inteira, vissem e se calassem? Como foi possível que a mãe dela, a pessoa que deveria protegê-la, entregasse sua própria filha para pagar uma dívida, como se ela fosse um bem material?
E, mais uma vez, a sociedade se faz conivente. Aceita a dor e o sofrimento, a exploração e o abuso, e cria desculpas. “É assim que as coisas são.” Mas não é assim. Não deveria ser. E, no entanto, continuamos a viver num mundo onde histórias como a de Ana se repetem, dia após dia, em silêncio.
Quando me despedi de Ana, eu sabia que a sua história não seria apenas mais uma que se perde nas páginas de um jornal. Ela era uma voz que gritava, mas ninguém ouvia. Era uma vida roubada, um sonho esmagado, uma adolescência arrancada. E, mais do que tudo, ela era a vítima de uma sociedade que aceita a violência como se fosse algo normal, que normaliza o impossível.
A dívida de Ana nunca foi financeira. A dívida que a sociedade tem para com ela e com tantas outras meninas é imensurável. Porque cada vez que fechamos os olhos, cada vez que calamos os gritos delas, nós estamos permitindo que mais uma Ana seja forçada a perder sua infância, seus sonhos, sua liberdade. A pergunta que fica é: até quando vamos permitir que isso aconteça? E quando seremos capazes de dar a elas a chance que tanto merecem?