Mundo

O sonho que o corpo de Amina não pode carregar

O sol de Inharrime preparava-se para se esconder, tingindo o céu com tons de laranja e dourado, quando os meus passos me levaram a um pequeno mercado de barracas de madeira. Havia algo encantador naquela vila. Era um lugar de contrastes, onde a simplicidade da vida rural coexistia com uma tristeza quase palpável, escondida nos olhares furtivos dos seus habitantes.

Foi ali, naquele final de tarde, que vi Amina pela primeira vez. Era jovem, talvez no final dos seus vinte anos, e tinha uma beleza tão delicada que parecia esculpida pela brisa que varria as margens do rio Inharrime. Mas, por mais que os traços do seu rosto fossem perfeitos, havia algo que os obscurecia: um olhar vazio, como se carregasse nos ombros todo o peso do mundo.

Ela estava sentada num banco improvisado, ao lado de uma pequena banca onde vendia frutas e legumes. Vestia uma capulana azul vibrante, mas os seus olhos traíam a cor e a vida que aquela peça de tecido parecia oferecer. Aproximei-me, não tanto pelos produtos, mas porque algo nela despertava uma inquietação que eu não conseguia ignorar.

“Boa tarde”, cumprimentei, tentando quebrar o gelo.

Ela ergueu os olhos, e por um breve instante, vi um lampejo de surpresa, talvez por alguém ter notado a sua presença.

“Boa tarde”, respondeu, com uma voz tão suave que quase se perdeu no som da brisa.

Perguntei pelos produtos e comprei algumas bananas, mas logo percebi que não era por aquilo que estava ali. Algo em mim sabia que havia uma história por detrás daqueles olhos cansados, uma história que pedia para ser contada.

“Posso sentar-me?” perguntei, apontando para o espaço ao lado dela.

Ela hesitou por um momento, mas assentiu. Assim começou uma conversa que mudaria a forma como via o mundo.

“Chamo-me Amina”, disse ela, depois de algum tempo.

O nome parecia carregar uma doçura que contrastava com a dor evidente no seu semblante. Não precisei pressioná-la muito; era como se ela quisesse desabafar, como se a dor reprimida finalmente tivesse encontrado uma brecha para escapar.

Amina era casada há sete anos. O marido, Joaquim, era um homem trabalhador, pescador, como muitos outros na vila. No início, o casamento deles foi cheio de sonhos. Planejavam ter uma família grande, crianças que corressem pelas areias e rissem sob as mangueiras. Mas os anos passaram, e os filhos nunca vieram.

“Fizemos todos os tratamentos que pudemos pagar. Fui a curandeiros, tomei chá de todas as folhas que me indicaram. Até ao hospital fui… Mas nada. O médico disse que o problema está em mim.”

As palavras saíram entrecortadas, como se fossem lâminas a rasgar-lhe o coração.

“O Joaquim era um homem paciente… No início”, continuou. “Mas a paciência dele acabou. Agora mal fala comigo. Às vezes passa dias fora de casa. E quando está em casa, não olha para mim. É como se eu fosse invisível.”

O silêncio entre nós era preenchido apenas pelo som distante de crianças a brincar e pelo murmúrio do vento.

“Na nossa cultura”, continuou ela, “uma mulher que não dá filhos ao marido não é uma mulher completa. É como se eu fosse um campo estéril, sem valor. As vizinhas cochicham, e até as crianças da aldeia olham para mim com piedade.”

Amina contou-me sobre um episódio recente, que parecia ser uma ferida aberta. Uma das vizinhas, ao saber que ela não podia ter filhos, fez questão de dizer em voz alta que “uma casa sem crianças é uma casa morta”.

“Senti-me a morrer por dentro”, confessou. “Quis desaparecer, deixar tudo para trás, mas onde iria? Não tenho para onde ir. Esta é a minha casa.”

O rosto dela tornou-se ainda mais sombrio quando mencionou a sogra, que constantemente incentivava Joaquim a arranjar outra mulher.

“Ela diz que é o direito dele. Que ele não pode envelhecer sem um filho para continuar o nome da família.”

Enquanto ela falava, não pude deixar de admirar a sua beleza. A pele escura brilhava à luz do entardecer, os olhos grandes e expressivos tinham uma profundidade que parecia conter oceanos de dor. Mas era uma beleza entristecida, marcada por uma luta constante para encontrar o seu lugar num mundo que a rejeitava por algo que ela não podia controlar.

“Às vezes, pergunto-me o que fiz para merecer isto. Será que Deus está a castigar-me por algo?”

A pergunta dela ficou suspensa no ar, ecoando no silêncio ao nosso redor. Não sabia o que responder. Como é que se explica a uma mulher que a sua dor não é um castigo, mas uma circunstância cruel da vida?

Amina ergueu-se de repente, como se tivesse dito tudo o que precisava. Olhou-me nos olhos, e naquele momento percebi que o que ela queria não era piedade. Era compreensão. Era alguém que a visse, que reconhecesse a sua existência para além da esterilidade que a sociedade tanto apontava.

“Obrigada por ouvir-me”, disse, com um sorriso frágil que não chegou aos olhos.

Enquanto a via afastar-se, o céu de Inharrime escurecia, anunciando a chegada da noite. Fiquei sentado por mais alguns minutos, tentando digerir tudo o que tinha ouvido. Amina não era apenas uma mulher estéril; era um reflexo de tantas outras mulheres que vivem sob o peso de expectativas que as esmagam.

Naquela noite, escrevi sobre ela, tentando fazer justiça à sua dor, à sua força silenciosa e à injustiça de um mundo que mede o valor de uma mulher pela sua capacidade de gerar filhos.

E, enquanto escrevia, só conseguia pensar numa coisa: Amina merecia mais. Merecia um mundo onde fosse amada pelo que era, e não pelo que não podia ser.

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