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Cartografia de um corpo em travessia

Elísio Miambo não escreve a partir de uma zona de conforto. A sua escrita é uma travessia inquieta por territórios híbridos da linguagem. Já na epígrafe, o autor avisa: o livro não se pretende poesia nem prosa, mas algo entre — ou além —, um “senão prosódico, expressivo e contemplativo”. É aí que começa a sua audácia: no rompimento com os géneros, na recusa em ser domesticado por formas fixas, na aposta numa escrita que se ergue sobre o ritmo, a ressonância e a musicalidade do pensamento.

A estrutura do livro organiza-se em três movimentos. O Primeiro Acto, intitulado Catarse, apresenta-nos um eu-lírico que expulsa, expõe e exorciza. É o território da crise íntima, da consciência em desassossego, do poeta que transforma a escrita em divã e sacrário. Aqui, os versos — quase sempre curtos, fragmentados ou quebrados — espelham os estados de alma de alguém que não deseja consolar nem ser consolado, mas apenas dizer a verdade no limite da linguagem.

No Segundo Acto, Kiini — palavra swahili que significa “essência” —, a travessia torna-se mais vertical: o autor mergulha na dimensão ontológica da existência africana. A escrita adquire uma densidade telúrica, marcada por ecos que vão de Senghor e Césaire a Wole Soyinka e aos tigres do Oriente. Há aqui uma crítica às idealizações ocidentais da “africanidade”, bem como uma auto-reflexão sobre os impasses do pan-africanismo. É neste núcleo que as brumas se começam a desfazer: enunciam-se as raízes, as dores herdadas, as contradições de pertença, as fendas na ideia de identidade.

A terceira parte, Epístolas, é um tratado animista em forma de cartas. Dezassete missivas dirigidas a entidades simbólicas — credos, génios, monarcas, egos, filhos, escravos e senhores.

Este caderno articula, com rara sensibilidade, um discurso ético, político e existencial. O poeta assume-se aqui como cronista do tempo: escreve com a consciência de que o presente é uma ruína líquida, onde se confundem memórias e simulacros, identidades e rótulos, realidades e espectros.

No plano das influências, Miambo é um autor de muitas vozes, se quiser, referências. A sua escrita conjuga os ecos de Fernando Pessoa e José Saramago, mas também a cadência jazzística de Erykah Badu, a sonoridade reflexiva de Lokua Kanza, a lírica urbana de Mr. Hudson e a iconoclastia do rap lisboeta. Nota-se, ao longo da obra, um diálogo constante com a filosofia africana, com o existencialismo ocidental e com a teologia da libertação. E há ainda uma herança local que pulsa: a reverência à Associação Xitende, não necessariamente no plano estético, mas como território simbólico que se inscreve na carne da sua escrita.

A linguagem de Elísio Miambo é paradoxal: barroca e límpida, opulenta no léxico, mas precisa na emoção. A sua maior ousadia talvez não seja formal, mas espiritual: escreve para se despir das clausuras — não apenas as do corpo, mas também as da linguagem, da moral, da história, da fé, da memória, da própria ideia de sujeito. A escrita, para ele, penso, não é mero gesto estético: é um acto de sobrevivência, um processo alquímico de conversão da dor em forma, do silêncio em som, do íntimo em partilha.

Importa dizer com clareza: Brumas desfeitas, clausuras desnudadas é um livro que exige do leitor uma escuta poética afiada, uma disposição para o abismo, um desejo de atravessar espelhos e opacidades. Mas é precisamente por isso que se revela um livro necessário ou talvez urgente.

Porque nele se faz da literatura o último reduto de resistência e de revelação.

 

Nota:

Texto apresentado durante a conversa com o autor no dia 03 de Maio de 2025, durante a FELGA na Biblioteca Pública Provincial de Gaza.

 

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