Repensar as nossas identidades e tradições – O desaparecimento do canto em grupo nas cerimónias de celebração

Esta história começa com um casamento no qual não fui convidado para a festa do salão, só fui convidado para o Xiguiane (conto isto para entenderem por que é que fui para a cerimónia já com um olhar crítico). O xiguiane foi num quintal aberto, algures na cidade da matola e, como não tinha sido convidado a festa do dia anterior no salão (acho que já tinha dito isto) cheguei cedo porque não estava cansado e isso me permitiu ver a festa desde o início, incluindo aos últimos acertos antes da chegada dos compadres, os famosos masseves nas várias línguas do sul.
Após uma ligeira espera, quando as mesas já estavam compostas, as chamussas e os rissóis já tinham sido devorados, os banhos-marias já estavam aquecidos para receber a comida, eis que os compadres decidem aparecer com a noiva. Antes da sua entrada, houve a tradicional cerimónia da troca de notas de metical penduradas no caniço (de forma breve: a família da noiva e a família do noivo devem, cada uma delas, sem combinação prévia, conseguir hastear, num pau de caniço, uma nota de metical com o mesmo valor. A família da noiva só entra na casa da família do noivo quando ambas conseguirem fazer esse acerto).
A cerimónia continuou, cortou-se o bolo, comeu-se e bebeu-se (aqui em voz baixa: descobri que algumas pessoas, que não foi o meu caso, espero que não duvidem de mim, rejubilaram por não terem sido convidadas à festa do dia anterior no salão porque, segundo as normas da religião da noiva, o álcool era totalmente proibido). De seguida chegamos a um dos momentos que me é favorito nas cerimónias de casamento e outras cerimónias comemorativas de grande envergadura social: a entrega dos presentes.
O mestre cerimónias passou pelas mesas e, com uma folha A4 ajeitada na hora, foi recolhendo os nomes dos grupos que haveriam de desfilar pelo “tapete vermelho”, que é um corredor que é montado para os grupos desfilarem enquanto se dirigem à mesa dos noivos para entregar os presentes. Diferente das cerimónias no salão, onde a entrega dos presentes é mais discreta, pois há uma mesa reservada para depositá-los, no dia de xiguiane os grupos de familiares, amigos, vizinhos, entre outros, esmeram-se entre cânticos, danças e nos detalhes na hora de realizar esta entrega. Tudo é passado a pente fino e merece um cântico, uma dança, uma mensagem especifica.
O ralador, o pilão, a peneira, o copo, o cesto, o relógio, a mala…. Nada passa despercebido, pelo menos nas tradições do sul do país, que é de onde escrevo este texto. Há, inclusive, normas para a ordem dos grupos. Por exemplo, os pais do noivo e/ou os padrinhos, são sempre os últimos a entrar em cena.
Só de pensar neste momento tradicional e criativo que se aproximava, cheguei até a pensar que tinha sido bom não me terem convidado ao salão, porque a verdadeira festa mesmo era o xiguiane (esse era eu a tentar consolar-me por ter sido minhado no salão).
Porém, para a minha decepção, quando o primeiro grupo ia entrar, devia ser um grupo de primos ou amigos, no lugar de cantar à capela e em grupo, pediram ao DJ para tocar uma música e foram seguindo o som que emergia da coluna! Pensei que tivesse sido casual, mas a façanha repetiu-se em praticamente todos os grupos seguintes e muitas das músicas que o DJ tocou foram sendo repetidas. As vozes à capela e em grupo foram substituídas pelo som de “JBL’s”, o soprano daquela tia ou o tenor daquele tio que, a qualquer momento, podiam sempre reinventar a letra, alterar o ritmo, adicionar uma nova emoção, tudo para adptar o cântico à ocasião, fazendo sobressair a criatividade momentânea e, sobretudo, resgatar e dar vida a cânticos e ritmos tradicionais que vem (ou vinham) atravessando décadas e, se calhar, séculos. O clássico “yho yho…sê wa nguena padrinho” (Yho yho… agora já vai entrar o padrinho) perdeu-se algures entre o spotify e o youtube do DJ. Senti o toque de humanidade a se esvaziar na automatização que estava entre o aumentar e o diminuir do volume.
Não foi a primeira e nem a última cerimónia que esta substituição do “tradicional” pelo “moderno” acontece, mas tenho sentido que vem acontecendo num ritmo acelerado. Goste-se ou não, os cânticos em grupo, à capela ou ao som do batuque, da xigovia, da mbira, da guitarra, estão a desaparecer das nossas cerimónias, sobretudo nas zonas urbanas.
Mas por quê isto? Uma das razões, penso eu, é que se, num passado, os cânticos e as danças, eram comumente ensinados aos mais novos de forma muito espontânea e genérica dentro das comunidades, de uns tempos para cá, com a degradação do sentido de comunidade, sobretudo nas zonas urbanas, tal já não acontece. Chegados a um estágio sócio-histórico em que “quase ninguém” se lembra como é que se canta para, por exemplo, entregar presentes, ou, por exemplo, dirigir as cerimónias fúnebres, os cantores visionários já encontraram solução. Gravaram os sons tradicionais e os tornaram amplificáveis nas JBL’s, permitindo assim que não se esteja mais dependente do tenor daquele tio ou do soprano daquela tia, cujo papel dela nas cerimónias era exactamente esse, o de dirigir os momentos musicais.
Adicionalmente, pode haver outra hipótese que não anula a primeira: a comodidade. Vamos combinar, é mais cómodo pedir ao DJ lançar um som da Marlene ou do Mr. Bow, do que nós próprios usarmos a nossa voz ou, pior ainda, termos a obrigação de participar naqueles ensaios “chatos” que antecediam às cerimónias de grande envergadura social, como o casamento (Para pessoas como eu que tem as notas vocais tortas de nascença, esta solução é duplamente cômoda). A vida corrida da cidade não nos permite ter esse tempo de ensaiar, seja em família, na comunidade ou grupo coral da igreja.
Por outra, ainda na senda da comodidade, o tradicional está cada vez mais caro para os urbanistas.
Para quem deseja desafiar a modernização desses momentos e pretenda ter um grupo tradicional para animar a sua cerimónia, vai ter que adicionar mais uma linha no orçamento e tem de ser uma linha recheada porque estes grupos tradicionais não cobram barato, daí ser realmente mais cómodo confiar no DJ e o passado e o tradicional que entendam.
E no meio disto pergunto-me, onde está a famosa identidade africana que vamos celebrar no dia 25 de Maio? Reinventou-se ou desapareceu de vez? Ou se calhar nem interessa assim tanto pensar nela? Ou o que interessa é vestir uma peça de capulana e o resto é resto? Daqui a alguns anos teremos, por exemplo, nos ritos de iniciação no centro e norte do país, JBL’s a substituírem o grupo de mulheres e de homens que tem animado essas cerimónias porque o “moderno” ficou mais cómodo e barato em relação ao “tradicional”. E se calhar não deve faltar muito para que o “loku ni file mu nga ni rilenee… a milhoti yha nwina yhi ni pfalela tilo”, que é cantando nas cerimónias fúnebres, seja tocado na JBL. (tradução: Quando eu morrer não chorem por mim! As vossas lágrimas vão me vedar o acesso ao céu).
E agora? Estão a ver problemas que criaram por não terem me convidado ao salão?!! Evitem!.