Poetas de Maio (os de hoje) dialogam (com os de ontem) e nunca mais será sábado

O sangue dos nomes/é o sangue dos homens/Suga-o também se és capaz/tu que não os amas.
Craveirinha, José. In Nunca mais é sábado: antologia de poesia moçambicana (NS:APM), p. 72.
Fui convidada por Nelson Saúte, para intervir no seu programa “Nunca mais é sábado”, uma tertúlia com o nome homónimo da antologia que este escritor e jornalista organizou em 2004; um livro que reitera, através do seu título, um poema de Rui Knopfli.
O cartaz do programa anunciava: “Nelson Saúte conversa com Sara Jona Laisse sobre os poetas de Maio”, tendo, entretanto, no convite, o seu editor mencionado “poetas de Maio”, consagrados e da antiga geração de escritos em Moçambique; decidi, nessa sequência, ser importante acrescentar outros-novos poetas, abrindo espaço para o alargamento do convívio literário entre diferentes gerações, até porque “todos os nomes contam”, tal como o refere José Craveirinha, na epígrafe acima, que inicia o seu poema “Hino à minha terra”. Há, além disso, em vários lugares do mundo, antologias que coligem autores consagrados e não consagrados, convívio que é salutar. A diversidade é sempre uma riqueza.
Em Moçambique, durante muitos anos, ficaram conhecidos como “poetas de Maio” cinco escribas, nomeadamente: José Craveirinha (JC), Glória de Sant´ Anna, Kalungano, Sérgio Vieira e Heliodoro Baptista (HB). Provavelmente houvesse outros, mas esses pontificavam a “Casa Literária”. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, hoje, podemos incluir no grupo dos “poetas de Maio” Hirondina Joshua (HJ), Japone Arijuane, Lino Mukurruza, e Lahissane, que se estrearam nos anos 2000. Há muitos mais, no entanto, estes foram um exemplo colocados à conversa naquele programa.
O meu trabalho de dinamização literária tem me impelido a encontrar caminhos para a análise, interpretação e compreensão de obras literárias, sobretudo, de prosa. Pouco trabalho a poesia, por esta, para mim, ser para deleite. Estudo-a em casos imperiosos, os que exijam uma reflexão que se pretenda aprofundada. Anuí ao convite à tertúlia, decidindo verificar de que modo é que os “poetas de Maio” poderiam dialogar entre si, através das suas obras, até porque, tanto o programa, quanto a antologia acima mencionada são o reiterar de interações que se podem estabelecer, através da literatura, em diferentes textos. Obviamente, anotei algumas questões estéticas relativas aos trabalhos dos poetas a que aludi.
O diálogo que me propus abordar baseou-se na ideia de explicação da técnica da intertextualidade que pode ser realizada por diferentes vias: alusão, referência ou transcrição de excertos ou fragmentos de um texto no outro, de palavras, de fragmentos ou de títulos análogos ou exactamente os mesmos, ressonância de ideias, entre outros.
- Dos antigos poetas de Maio
Iniciei, então, a animação da tertúlia chamando a atenção à leitura do poema intitulado “Intertextualidade”, da autoria de Filimone Meigos. Esse poema encontra-se antologiado no livro Nunca mais é sábado, pp. 521-523 e consta do livro Poema Kalash in Love. Filimone Meigos é um poeta de Março, entretanto, foi citado, por ter invocado, por via da intertextualidade, no seu poema já referido, os “antigos poetas de Maio”.
Trata-se de um poema epigrafado com uma alusão a um caderno de nome “Tindzolé”, do livro karingana ua karingana, de José Craveirinha, seguido da palavra tambor, que atravessa grande parte da obra desse autor, mais a obra de Kalungano.
O poema está escrito em português, com recurso a utilização de lexemas em línguas bantu, tal como acontece em alguns poemas de JC. No poema “Intertextualidade”, o poeta Craveirinha é refererido através dos poemas “Karingana ua karingana”, “Mampsincha”, “Poema do futuro cidadão”, “Saborosas tanjarinas d´Inhambane”, “Sia-vuma” e “Subida”. Acrescenta-se a esses poemas a menção à rua Araújo, também, cantada por Craveirinha, mais a crítica relativa ao custo de vida, manifesta no poema “subida”, ao afirmar: “Ai a passividade animal”, p. 523. Há outras alusões.
Heliodoro Baptista é rememorado, através da alusão à aceitação da diferença e de modos de pensar, com recurso à invocação de fragmentos textuais, nos quais Meigos refere: “[…] Pensar que o vermelho dá a mesma sensação a todos?/Há os que usam cores não convencionais” […] p. 523. Tratou-se, neste caso, de homenagear HB, um exímio defensor da democracia.
Sérgio Vieira é lembrado através do seu poema intitulado “Poema para Eurídice negra”, no uso que Meigos faz, quando refere: “Eurídice negra: que tal ficasses duma vez por todas às riscas?”. Ficar às riscas sugere ser uma construção de Meigos, para demonstrar as diferentes cores e tonalidades que se pode ser, no mundo. cfr. p. 523 (aspecto que dialoga com as ideias de HB). Entretanto, vale acrescentar que, no poema de Sérgio Vieira, Eurídice, a negra é enaltecida num contexto de exaltação à África, com toda a diversidade que a caracteriza, daí a utilização da expressão “às riscas”, que lembra diversidade. Vale acrescentar que o poema de Sérgio Vieira canta com amor e esperança (dias melhores), a beleza dos diferentes países africanos que poderiam ter tido um outro percurso, se não tivessem sido escravizados.
O poema “Maternidade” da autoria de Glória de Sant´Anna, em Nunca mais é sábado, (p.134), diz nos versos que seguem: “ […] dos nossos ventres altos,/os filhos que brotarem/nos chamarão com a mesma palavra” […]. Estes são os desejos do sujeito poético criado pela autora, são retomados por Meigos: em jeito de ressonância do pensamento representado no poema “Maternidade”, tal como se pode ler em “Intertextualidade”: “…se a minha mãe plantou uma árvore, essa árvore/é muita e até sempre, e se deleita a bambolear-se belecando-nos/ numa errepeemidade sui generis que seus frutos têm o sabor destas/gentes que somos nós/obreiros naïves da nossa própria existência […]. Se nos recordarmos do dito por Glória de Sant’Anna, fica a ideia de que as mães são sempre mães, iguais a si próprias e iguais a qualquer outra mãe, de qualquer lugar do mundo. De algum modo,
Com excepção de JC, os poetas mencionados têm sido homenageados, de modo escasso, em Moçambique. Entretanto, vale recordar que todos eles, à excepção de Glória de Sant´Anna, povoam a memória dos moçambicanos, a partir do trabalho que é realizado pela Escola, por serem cânone literário ou seja, por fazerem parte dos textos obrigatórios no Ensino. De todos eles, José Craveirinha é o mais estudado e, nos dias que correm, o grupo musical constituído por D´Manyssa e outros, tem musicado os seus poemas. Refira-se que o cânone faz parte da tradição que se pretende transmitir a determinada sociedade.
- “Novos poetas de Maio” e seu diálogo com os antigos
[…] É eu poder dizer-te aquilo que sou/e não aquilo que tenho/exercício de espirito/ou maneira de estar, /consuetudinários,/ou seja costumeiros, não porque somos filhos do rei/mas porque queremos ser netos […]
Meigos, Filimone. In NS:APM p.522. (o negrito é meu).
Do conjunto dos “novos poetas de Maio”, destaco, a seguir, alguns daqueles que, à semelhança do que se pode aprender a partir da epígrafe desta parte do texto, prestam atenção à tradição literária, “são consuetudinários […] costumeiros” ou, por outra, capazes de guardar memórias literárias dos seus predecessores. São os “netos”, aqueles que antes ou durante a o seu processo de escrita, leem os que os antecederam na escrita. São eles: Hirondina Joshua, Japone Arijuane, Lino Mukurruza e Lahissane. mais haverá, certamente.
Esses poetas tiveram uma iniciação literária baseada em movimentos de dinamização literária e de oficinas de literatura. Há, neles, a preocupação com o “lapidar a palavra”, de modo criativo, mas, também, de amplificar a cultura estética que os precede, através da técnica da Intertextualidade. Evidencio-os pelo diálogo que estabelecem com os “poetas de Maio” mencionados acima.
Começo por apresentar Hirondina Joshua, que é autora das obras: Os Ângulos da casa (2016), prefaciado por Mia Couto; Como Um Levita À Sombra dos Altares (2021), prefácio de António Cabrita e Córtex (2021), que leva o prefácio Joana Bertholo. Tem trabalhos em co-autoria nacional e estrangeira e está antologiada no país e no estrangeiro.
Uma vez que este texto se baseia na intertextualidade, vale recordar que ao estilo do sujeito poético criado por Eduardo White, em Janela para o oriente, sujeito que vê (ou imagina) o mundo a partir da janela do seu quarto; na obra de HJ, o sujeito apreende o mundo, ao seu redor, a partir dos ângulos de uma suposta casa. Especificamente, HJ tem poemas que sugerem a leitura do interior de uma casa, depois outros que revelam a saída desse interior, para o exterior. Leiam-se os poemas “1”, “Alto Maé que mora em mim” e “Fuga em Ré Menor”. Acrescentando, leia-se o poema “2”, do caderno “os ângulos da casa”, da já referida obra:
Como se estivesse num quarto todo desarrumado, gavetas/postas ao tecto, janelas ao chão, e o chão fosse parede, e/ a roupa estivesse estendida dentro do coração, que é a/ lareira gélida. Essa porta abrirá ao abismo, mas será um/abismo do abissal, onde se vê o fundo desse quarto, antes/ de ser aquilo. H.J, p. 14.
No poema “Alegorias”, desse mesmo livro, p. 43, o eu poético dialoga com Heliodoro Baptista, no seu poema intitulado “Alegoria”, faz parte dos textos obrigatórios no Ensino Secundário Geral em Moçambique e que está integrado no livro do autor, intitulado Por Cima de Toda a Folha, p. 31. Ambos poemas falam em aves e numa suposta dor. H.J. dialoga com H.B. Com o mesmo título “Alegoria”, existe um poema de Glória de Sant’ Anna, na p. 9 do livro Um Denso azul silêncio. Entretanto, o conteúdo do texto desta última autora não se relaciona com os anteriormente referidos.
Hirondina iniciou a sua escrita, participando em “oficinas literárias” dirigidas por Fernanda Angius, uma literata que viveu em Moçambique.
Japone Arijuane é autor das obras Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio (2014), Literatas e Ferramentas para desmontar a noite” (2020), pela FFLC. É prémio revelação CEMD-Lisboa (Ciclo de Escritores Moçambicanos na diáspora) e menção honrosa no Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa (2019), com o romance O Homem que vivia fugindo de si. É co-fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, apoiado pelo escritor Calane da Silva, que foi fundamental para a iniciação literária desse movimento.
Esteticamente, através do livro Dentro da pedra ou metamorfoses do silêncio, Arijuane chamou-me a atenção pelo tema que abordou, sobre a pedra, homenageando-a. Dando-lhe o valor que ela tem para a humanidade: símbolo do poder, defesa de território, caça, cozinha, fogo e valor espiritual. São poucos os autores que dedicam espaço de trabalho a este objecto, na arte da alma. Dos poetas da língua portuguesa são de referir: Carlos Drummond de Andrade, Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho.
Japone Arijuane tem um poema dedicado a José Craveirinha e a Stélio. A intertextualidade entre este poema e a obra de José Craveirinha assenta no facto de haver referência à vida e à obra de José Craveirinha, nomeadamente: Mafalala (lugar de poesia e de eleição para trajecto de fruição diária e morada-de facto de JC). Diz-nos o poema de Arijuane: “Passo pela Mafalala/para que em mim fique a ideia/de pisar os trilhos/galgados um dia pelo poeta”, p. 21. Há referência ao nome Felismina, que também é título de um poema de José Craveirinha. Além disso, neste texto, encontra-se uma referência à obra Xigubo e ao amor de Maria por Craveirinha. Diz o poema: “[…] mas pela ideia de saber/Craveirinha ali/sua Maria amou”, p. 21.
Importa dizer ainda que Arijuane comunga do mesmo amor pelas palavras, com Heliodoro Baptista. Aquele, no seu poema nr. “11”, dedicado à Fernanda Angius, p. 22 afirma: […] nunca me eduquei para amar/qualquer que fosse o silêncio/senão o das palavras. Já HB, no seu poema “Ode às palavras”, afirma: […] é preciso amar muito as palavras. /As velhas, perdidas no tempo e no ar/[…], p. 45, Por cima de toda a folha.
Lino Mukurruza publicou: Vontades de partir e outros desejos (2014), pelo FUNDAC; Almas em tácitas (2015); A extinção das cinzas (2021) e O Pouso do casco (2024). Este autor está antologiado em Moçambique. Tem sido uma figura preponderante, na dinamização literária em Quelimane, após alguns anos, ter sido activista literário em Lichinga.
Do ponto de vista estético, em A Extinção das cinzas, o autor prescinde da utilização de maiúsculas no início do texto, de sinais de pontuação que são realizados pela força ilocutória (propósito do falante), técnica aceite no que a literariedade diz respeito, recurso também utilizado por Pedro Pereira Lopes e por Virgílio Sithole, em Moçambique. Nessa obra, há um poema que diz: “o rosto é o único lugar que deixa marcas de ser/outro/o umbigo/marca das mães e filhos/no nó da matéria de ser”, p. 53. Este poema faz lembrar igualdade humana (mencionada no poema “Maternidade”, de Glória de Sant´Anna, acima referido), marcada a partir das mães, no nascimento de uma criança, igualada, simbolicamente, pelo umbigo.
Lahissane publicou Pores-do-sol (2022). É dinamizador literário do grupo Xitende, em Xai-Xai e co-autor de antologias publicadas no país e fora deste. Já foi destaque literário, no Brasil e nas Honduras, pela qualidade da sua obra.
Nesta conversa entre escritores, coloco Lahissane em dialogia com Heliodoro Baptista (poema “Ode às palavras”) e com Japone Arijuane, através do poema (sem título) acima referido, que alude ao amor à palavra. No seu poema intitulado “Na mesa de um poeta”, do seu livro Pores-do-sol, Lahissane afirma: “Há sempre uma poesia/cantando na mesa de um poeta/[…]//Sim, na mesa de um poeta pode falta/pode faltar tudo:/[…] mas nunca falta um jarro de poesia […]// Na mesa de um poeta/ come-se poesia/bebe-se poesia […].
Muito mais haveria a referir, acerca dos “poetas de Maio”, entretanto, o espaço de uma tertúlia não foi suficiente para tanto. Assim, tendo aprendido que “todos os nomes contam”, a partir da epígrafe do poema “Hino à minha terra”, que encima o presente texto, eu não os quis “sugar” os nomes que nos dizem respeito, os dos jovens “poetas de Maio”, não seria justo; daí tê-los integrado na conversa com Nelson Saúte, através da interculturalidade, que é ampliadora de tradições ou de estéticas literárias. Outros nomes, certamente, virão, em outros debates e em outras tertúlias.
*Por Sara Laisse. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.