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O Epitáfio da Pátria e os vestígios do Abismo

Quando a experiência humana atinge o limiar do inexplicável, a literatura torna-se um instrumento de sobrevivência diante do abismo. “O Epitáfio do Josemar Araújo e outros ateus do criador”, de Ernestino Maute, move-se nesse vértice de tensão, onde a loucura e a morte transcendem a função temática para operar como chaves hermenêuticas do colapso.

Nas entranhas da psique, onde a razão se dissolve e as reverberações do viver soam em ritmos que jamais se encontram, Maute impele o leitor a uma incursão audaciosa, rompendo o formato tradicional de livro de contos e propondo uma experiência literária intensa, na qual o absurdo e o trágico se entrelaçam como resposta à severidade do real. Tal como propôs Albert Camus em “O Mito de Sísifo”, “o absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo”, e é precisamente nesse encontro que a obra encontra a sua potência, expondo o desalinho entre o desejo e a realidade.

Cada narrativa é atravessada por metáforas de alto teor que abordam temas como fome, guerra, prostituição e o insólito, não como assuntos isolados, mas como sintomas de uma crise ontológica.

No conto que dá o título à obra, o gesto de Josemar, ao tentar registrar um jumento como filho, expõe a impotência das instituições e a tentativa de dar sentido à realidade num cenário de completo desamparo. Passagens, como a mulher que “se contorce em dores de luz” ou o epitáfio “escrito com tinta de óleo num pedaço de madeira”, materializam o sofrimento.

Maute constrói, assim, um espaço narrativo onde o trágico e o absurdo se encontram, configurando uma resistência poética que desafia as explicações satisfatórias. A sua obra confere subjectividades em permanente deslocamento, articulando elementos que moldam a experiência dos personagens e tensionam as normas sociais vigentes.

Em “O Louco Vitalício”, a figura do tio, que “persiste em tecer com palha o tempo”, desloca-se da patologia para uma espécie de lucidez alternativa, que confronta os códigos de normalidade. Aqui, ressoa a afirmação de Michel Foucault em História da Loucura, de que “a loucura, longe de ser uma anomalia, pode ser a resposta mais lúcida ao insuportável”, pois a obra parece reivindicar, através dessa personagem, a capacidade de enxergar o mundo com olhos que recusam a lógica instituída.

Já em “Os Enterros do Meu Pai”, a morte não actua apenas como fim biológico, entretanto como ruptura na continuidade temporal, afectando a percepção do narrador — como sugerem as “lágrimas que ensoparam a Bíblia Sagrada”. A memória aqui não se oferece como registro fiel, no entanto como movimento sinuoso, contaminado pela dor e pela tentativa de reconstrução. Nessa fluidez, Maute explora as zonas nebulosas da consciência, convocando o leitor a escutar o que resiste no íntimo.

Entre os méritos mais marcantes da obra destaca-se a criação de personagens singulares que revelam com agudeza as múltiplas faces da existência. A expressão “Desde que se conhece como pessoa, nunca foi gente…”, encapsula o vazio que habita aqueles que vivem a margem esboçando com lirismo quem nunca teve lugar no mundo.

Embora a escrita do autor evidencie um domínio expressivo notável, por vezes a metáfora parece mais arquitectada do que sentida, emergindo como efeito de estilo dissociado da experiência emocional dos personagens. Essa tensão entre forma e vivência também se manifesta na construção das vozes narrativas, cuja homogeneidade compromete a intensidade e subjectiva que a obra propõe explorar.

Ainda assim, é justamente nesse esforço de empurrar os limites da linguagem e de tensionar as convenções do enredo que o autor contribui para um exercício literário ousado e instigante no panorama moçambicano.

No fim, o que a obra de Ernestino Maute recorda é que a literatura não apaga o abismo, entretanto, mostra que é possível habitá-lo sem perder a consciência. E, talvez por isso, como o autor afirma, “é difícil lapidar uma pátria na luz”, porque há na escrita o gesto de quem resiste, fazendo da palavra uma arma contra o silêncio. Portanto, o Epitáfio é mais do que o último gesto sobre a morte, ou seja, é a primeira denúncia contra tudo que matou antes do fim: a fome, o abandono, o vício, a loucura institucionalizada. Com isso não se escreve para lembrar quem morre, mas sim para questionar quem deixou de morrer.

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