O mítico back to the future dos 340ml

A melodia fez-se ouvir como um suspense. Durante três, quatro, cinco minutos, os batimentos cardíacos do público aceleraram, ora acompanhando o ritmo da música que se anunciava, ora confrontando a razão e a emoção.
Na Sala Grande do Franco, os ponteiros do relógio marcavam 20h09. Mas, sem que ninguém se importasse pela hora, jovens e adultos de todas as idades adivinhavam, em surdina, o momento exacto em que a banda subiria ao palco. Em quatro actos, tudo aconteceu ao seu ritmo. Rui Soeiro (baixista), Paulo Chibanga (bateria), Tiago Correia-Paulo (guitarra) e Pedro da Silva Pinto (vocalista)… Todos recebidos com efusivas salvas de palmas. Quer dos que já tinham visto o quarteto actuar há milhões de anos, quer dos que, pela primeira vez, tinham pela frente algo aparentemente improvável ou inusitado.
Como se se preparassem para a luta, os 340ml tocaram “Shotgun”, um tema de há duas décadas, mas que ainda soa novo neste mundo que inventa espingardas de todos os feitios. Essa foi uma introdução mesmo curta para o que vinha; como se o tempo nunca tivesse passado, afinal a última actuação oficial da banda foi numa digressão na África do Sul, eSwatini e Moçambique, em Agosto de 2012, os quatro rapazes concretizaram velhas sintonias num palco que teve a honra de os receber no primeiro de dois concertos agendados. Como se ainda tivessem alguma coisa a provar, interpretaram “Hang on to yourself (Rachel)”, numa espécie de invocação da saudade. Talvez, por isso, o público andou breves minutos perdido na busca de um lugar na história da banda. Nesses 7 ou 10 minutos, apesar de raros ataques de excitação, na Sala Grande ainda se podia manter a compostura. No entanto, mal soou “Midnight”, o mais clássico som dos 340, o Franco quase entrou em ebulição. Sol de pouca dura. A intro tinha sido programada para justamente aquecer os ânimos e (re)alimentar uma expectativa que já era alta.
Todos de pé ouviram os acordes de “Michelle”, mas não a Obama, entre sorrisos de uma expectativa propositadamente adiada. Foi nesse momento que, entre o público, se ouviu o editor da Kulera perguntar:
– Assim já começaste a escrever?
À pergunta de Emílio Cossa, instantes depois reforçada pelo artista visual João Roxo, o jornalista não respondeu. Até porque não se escreve na exacta proporção o que se sente em determinados concertos. Todavia, alguém queria porque queria que o jornalista registasse algumas linhas no bloco de notas. Então, de forma providencial, um câmara man foi usado pelo destino sem que se desse conta disso. Ingénuo, apareceu mesmo rente ao palco para fazer a melhor filmagem do mundo, e, como se dissesse: “Já que não queres escrever, então leia…”, virou as costas ao público e as palavras tornaram-se inteligíveis: back to the future.
Não fosse aquele um tão esperado concerto dos 340, aquela conjugação de letras inglesas passariam despercebidas. Mas o back to the future, com letras garrafais, pareciam prenunciar a ligação de um hiato que, finalmente, levaria a banda a uma dimensão ulterior. Por isso, quando, ao fim de meia hora, Pedro da Silva Pinto referiu que o concerto estava inserido nas celebrações dos 30 anos do Centro Cultural Franco-Moçambicano, de facto, no instante a seguir, pareceu que o sentido de futuro, entre os elementos da banda, estava garantido. Sobretudo quando Tiago Correia-Paulo fez o seguinte convite:
– Vamos tentar tocar uma música nova?
– Não sei. – Gracejou o Pedro.
Nesse curto diálogo, a ideia que pairou no ar foi a de que os 340ml estavam de “regresso” a uma nova era, na qual, seguramente, iriam gravar o tão adiado terceiro álbum. Entretanto, logo a seguir, compreendeu-se que a questão sobre música nova era apenas retórica. Baixando a linguagem, era papo furado, uma vez mais, para a banda manipular a expectativa do público. Portanto, tocaram “Regents park” na profundidade experimental de quem compõe cada nota musical no palco, e como se a existência e a música fossem sinónimos. Aí o público sentou-se um pouco. Recarregou as energias para o que vinha e ainda deu-se ao gosto de pensar em voz alta:
– Esse Pedro canta muito!
A afirmação daquela jovem mulher soou mais do que um sussurro no ouvido, foi qualquer coisa como abrir um botão da blusa de linho, branca e fresca, com os lábios por humedecer e os olhos esbugalhados de fervor. Mas o namorado da formosa mulher, qual Taylor Swift moçambicana, também embalado na sonoridade de sons como “Make it happen”, não compreendeu o alcance da repetida afirmação, “Esse Pedro canta muito!”, e ainda bem! De outro modo, nem mesmo o jornalista saberia como teria sido o “welanço” entre ele e o artista.
Ainda sentados, muitos entre abraços e goles de cerveja, ouviu-se “The untitled song”, numa espécie de antídoto para todos os problemas que afectam o corpo e alma. Alguns puderam cantar e levitar, sem se interessarem com o relógio, inclusivamente, quando o quarteto interpretou “21:40”. Os mais atentos, apreciaram ainda os bons momentos de improvisação da banda, unindo uma sintonia espontânea e agradável a uma oportuna interacção com o auditório.
De repente, “Friday night and I’m all alone”. Pura mentira! A noite não era de sexta-feira e os 340ml não estavam sozinhos. Ainda assim, o público, bando de distraídos, levantou-se aos saltos como se fosse a única coisa sensata a fazer, como se fosse “Meia-noite”, como se despertasse da realidade para um sonho, como se desse um grito de liberdade, como se celebrasse o passado e o por vir. Excitação absoluta, sincera e selvagem.
A banda que iniciou o seu percurso musical em Maio de 2000, que lançou o álbum Moving, em 2003, e Sorry for the delay, em 2008, experimentou a paixão de se doar para os outros.
– Pedro, entrega! – Tiago Correia-Paulo disse isso um par de vezes. Porém, a entrega foi de todos. Cada um do seu jeito, pôs o seu instrumento a vibrar mais forte do que podia, dando à guitarra, ao baixo e à bateria particularidades que pareciam inalcançáveis.
– “Midnight” é a cena! – Disse Emílio Cossa, o editor.
E quando, a certa altura da interpretação, Pedro da Silva Pinto cantou:
– You’re the one I’m adoring at the midnight drive-in. – Ttraduzindo para português, qualquer coisa como “Você é quem eu estou adorando…”, aquela bela mulher concluiu que os versos eram para ela. Sem prestar muita atenção ao que sobrava do verso, abriu todos os botões da blusa, marca Zara, e pareceu estar a preparar-se para o que nunca ficou claro. Então tirou os óculos cor de rosa, afinal sem lentes, e conservou-os numa pequena Louis Vuitton castanha. Já com um teor de álcool amais no sangue, o namorado, qual Dr. Teodoro Madureira de Dona Flor e seus dois maridos, continuou entregue à sua sorte, feliz por ver a sua flor realizada aos abraços imaginados com um certo rapaz no palco.
“Midnight” foi necessariamente a cena! Quando o tema acabou, houve quem pensou que o concerto tinha chegado ao fim. Percebeu-se logo que “Radio 75” era imprescindível. Há uns anos, a banda poderia ter interpretado o tema com a mesma amabilidade num perspectivado concerto de celebração dos 20 anos do álbum de estreia, Moving. A COVID-19 tramou a pretensão e a coisa ficou na vontade.
Felizmente, a pandemia passou e uma empresa sul-africana, há séculos fã da banda, contactou os rapazes para realizarem concertos na Djoni. Porque os fãs moçambicanos há muito pediam um concerto em Maputo, os 340ml perceberam que não fazia sentido ignorar os seus conterrâneos. Com o Franco, encontraram uma data: 14 de Março de 2025. As vendas dos acessos ao show, entretanto, esgotaram (online), antes mesmo de o Franco receber os bilhetes impressos. Conclusão? Muita gente queria os ver. Solução? Uma nova data. Assim, como brincou a comunicação do Franco, “os últimos foram os primeiros”, uma vez que a data encontrada para o “concerto extra” foi 13 de Março. Assim, os 340ml agendaram quatro dias consecutivos de concertos: quinta e sexta-feira, em Maputo, e sábado e Domingo, em Joanesburgo e Cape Town, respectivamente.
“Moodswing” e “Australopithecus” foram outros temas tocados. “Fairy tales” ficou para o fim. Entre uma e outra música, já em jeito de despedida, Paulo Chibanga foi o grande protagonista de uma “improvisação” muito engraçada. Imagine-se, o baterista com boas cordas vocais, enquanto tocava vivamente o seu instrumento, “brincou de cantar” uns versos de “Empoderada errada”. A malta ouviu “txilar com cota” e sorriu divertido.
O concerto de hora e meia estava evidentemente a chegar ao fim, mas Paulo Chibanga ainda deixou a bateria por instantes para abraçar a filha Imani, que, aos 10 anos de idade, mesmo a condizer com o significado do seu nome swahili, tem Fé de que será uma cantora. Foi a primeira vez que viu o pai actuar. Sentiu-se orgulhosa e garante que vai guardar a experiência como uma luz que sempre se acende à meia-noite.