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Marginal de Vilankulo: Onde o mar já sorriu, hoje só há silêncio

Lembro-me daquele dia como se fosse ontem. E não porque o calendário mo grite, mas porque o coração ainda o guarda, como uma ferida aberta que insiste em não sarar. Era 12 de Março de 2024 quando a tempestade tropical Filipo tombou sobre Vilankulo. O céu escureceu de repente, como se alguém tivesse apagado a luz do mundo. O vento começou a soprar com uma raiva estranha, como se tivesse contas a ajustar com esta terra. E depois veio a água. Muita água. Tanta que parecia querer lavar tudo: as ruas, as casas, as árvores, os sonhos.

Nesse dia, senti pela primeira vez o que é o medo colectivo. Não era só meu, era de todos. Vi vizinhos a correrem com filhos ao colo, ouvi preces murmuradas ao vento, vi o mar a invadir espaços que antes lhe eram proibidos. A marginal, essa nossa velha amiga que sempre nos ofereceu o melhor nascee do sol da costa, foi uma das primeiras a ceder. Vi o chão a rachar como se a terra chorasse, árvores centenárias a tombarem como se não suportassem mais a dor, e as condutas de água a romperem como veias abertas de uma cidade ferida.

Mas a tempestade passou. Porque tudo passa, não é? Ou devia passar. Só que, um ano depois, a destruição continua ali. Intacta. Como um museu da negligência, ao ar livre. E essa é, talvez, a parte mais difícil de aceitar: não foi só a natureza que nos castigou — foi o esquecimento.

Hoje, ao caminhar pela marginal, não vejo apenas buracos e escombros. Vejo memórias partidas. Lembro-me dos domingos passados quando eu e minha família compravamos gelado de coco ali na esquina e sentávamos a ver os barcos regressarem da pesca. Lembro-me das sessões fotográficas improvisadas de casais apaixonados, das feiras de artesanato onde o riso e a música se misturavam com o cheiro a camarão grelhado. Tudo isso parece tão distante, como se pertencesse a outra vida. Uma vida que Filipo levou… e que ninguém se deu ao trabalho de tentar resgatar.

Os moradores das zonas adjacentes vivem hoje com um nó na garganta. Não é só a tristeza, é o medo também. Cada nuvem escura que se forma no horizonte é motivo de alerta. “E se vier outra tempestade?” — perguntam-se, em silêncio, enquanto olham para a estrada gretada e para as águas que, sem contenção, continuam a corroer o que resta da via. Já ninguém dorme tranquilo quando o tempo muda. Porque sabem que a marginal está nua. Desprotegida. Vulnerável.

E os automobilistas? Esses arriscam diariamente as suas vidas a transitar por ali. Alguns por necessidade, outros por desconhecimento. Mas todos partilham o mesmo risco: o de ver o carro engolido por uma cratera, o de ser surpreendido por uma derrocada. Há troços onde já nem se sabe o que é estrada e o que é erosão. É um jogo de adivinhação mortal.

A pergunta impõe-se: como é que chegámos aqui? Como é que deixámos um dos maiores postais turísticos de Vilankulo tornar-se um símbolo de abandono? Onde estavam — e onde estão — as soluções? Sim, ouvimos as mesmas palavras repetidas vezes: “não há recursos”, “é um processo”. Mas palavras não tapam buracos. Palavras não reconstroem estradas. Palavras não salvam vidas.

A marginal de Vilankulo não era apenas uma estrada. Era um espaço de encontro, de lazer, de identidade. Era ali que os turistas tiravam as fotos que depois rodavam o mundo. Era ali que os jovens sonhavam, que os artistas se inspiravam, que os idosos recordavam os seus dias de juventude. Hoje, o que resta? Um caminho perigoso, árvores tombadas como cadáveres de pé, canos a céu aberto, lixo acumulado nos cantos da desilusão.

O edil reconhece o problema. É verdade. Mas de que vale reconhecer sem agir? Um ano é tempo mais do que suficiente para se fazer pelo menos o início de algo. Um sinal de que há esperança. Mas nem isso. E enquanto isso, o turismo, que é a alma económica de Vilankulo, afunda-se com a estrada. Os visitantes já não vêm como antes. Quem viria, afinal, para ver destroços?

Não escrevo esta crónica para culpar apenas. Escrevo porque me dói. Dói-me ver a minha cidade assim. Dói-me ver tanta beleza esquecida. Dói-me ver o tempo a passar e a ferida a crescer. Porque Vilankulo merece mais. Os seus moradores merecem mais. As suas memórias merecem ser preservadas. E se ninguém gritar, tudo continuará assim: paralisado na espera.

A cada época chuvosa, com ela, a angústia renova-se. Até quando? Até quando vamos esperar por uma intervenção que nunca chega? Até quando vamos permitir que a negligência tenha mais força do que o amor à terra?

Sei que há quem diga que “há prioridades maiores”. Mas pergunto: o que é mais prioritário do que a dignidade de um povo? Do que a segurança de uma cidade? Do que o resgate de um lugar que foi, em tempos, um orgulho nacional?

A marginal de Vilankulo ainda pode ser salva. Ainda pode renascer. Mas para isso é preciso mais do que promessas. É preciso vontade. Compromisso. Ação. E acima de tudo, é preciso coração.

Porque uma cidade que perde a sua marginal, não perde apenas uma estrada. Perde parte de si. E não há tempestade no mundo que justifique esse tipo de perda. Só a indiferença o consegue fazer. E essa, meus caros, é a mais perigosa das tempestades.

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