A estrada que silenciou sonhos

Naquela tarde quente de domingo em novembro de 2020, o sol brilhava com uma intensidade quase abençoada. Em Malova, distrito de Massinga, Nomsa e Sílvina, primas inseparáveis, regressavam da praia, onde haviam passado o dia a rir, a correr e a sonhar. O mar, testemunha silenciosa da alegria delas, despedira-se sem saber que seria pela última vez. Jovens, com apenas 16 e 17 anos, carregavam o mesmo sonho: tornarem-se catequistas, servir a Deus e ajudar a comunidade com a fé e a esperança que emanavam. Era como se cada passo delas fosse guiado por um propósito maior, um chamamento divino. Mas aquele domingo guardava uma reviravolta cruel.
O regresso para casa, que deveria ser tranquilo, foi interrompido por uma tragédia. O som de pneus a derrapar sobre o asfalto seco, seguido por um estrondo ensurdecedor, silenciou para sempre os risos das duas. O carro, conduzido por um jovem sem carta de condução, despistou e capotou. A violência do impacto foi tamanha que não lhes deu tempo para reagir. No local, o silêncio que se seguiu foi mais ensurdecedor que o próprio acidente. O motorista fugiu, deixando para trás não apenas os corpos, mas uma comunidade inteira mergulhada em dor e incredulidade.
Quando cheguei ao local como jornalista, o cenário era desolador. A terra revolvida pelo impacto, sapatos abandonados no acostamento e manchas que contavam uma história de dor irreparável. A pequena comunidade de Malova parecia paralisada. As pessoas murmuravam entre si, tentando compreender como algo tão devastador podia acontecer num dia que começara com tanta alegria.
Dias depois, o funeral das primas tornou-se um marco de tristeza na aldeia. Foi ali, diante daqueles dois caixões, que vi o peso insuportável do luto. A mãe de Nomsa, sentada numa esteira, não tinha mais lágrimas para chorar. Em suas mãos, segurava um rosário e uma fotografia antiga das filhas. Cada prece que murmurava era acompanhada por soluços que ecoavam na alma de todos os presentes. Ao seu lado, a avó de Sílvina, de cabelos brancos e olhar perdido, repetia apenas uma frase: “Por quê, meu Deus? Por quê?”
O ambiente era sufocante. O cheiro da terra molhada pelas chuvas recentes misturava-se ao incenso que queimava ao lado dos caixões. O som dos tambores era cadenciado, mas cada batida parecia amplificar a dor. Os cantos de lamento das mulheres ecoavam pelo quintal, e as crianças, sem entenderem a dimensão do que acontecia, choravam ao verem os adultos desmoronarem. Nomsa e Sílvina não eram apenas duas jovens; eram a esperança de duas famílias, dois pilares de sonhos que foram brutalmente derrubados.
Para quem fica, o vazio é uma presença constante. As mães ainda mantêm os quartos das filhas intactos. As roupas, os livros, os sapatos – tudo permanece como estava, como se, de alguma forma, isso pudesse trazer as meninas de volta. Mas a vida nunca mais foi a mesma. Cada vez que o sol se põe, ele leva consigo um pedaço da esperança de que o futuro seja menos doloroso. É impossível apagar as memórias de domingos felizes, das brincadeiras, dos sonhos partilhados ao redor de uma fogueira.
E então, surge a questão da responsabilidade. A estrada, que deveria ser um lugar de ligação, tornou-se um campo de despedidas. O jovem motorista que causou o acidente carregava consigo a irresponsabilidade de quem nunca deveria estar ao volante. A sua fuga foi um acto de covardia que simboliza a negligência tão comum nas nossas estradas. Quantas vidas mais precisam ser perdidas para que aprendamos a respeitar a vida alheia? A estrada não é apenas asfalto; é palco de histórias que podem ser transformadas em tragédias irreparáveis.
Quando passo por Malova, vejo mais do que uma aldeia. Vejo as marcas de um acidente que não deveria ter acontecido. Vejo uma mãe que nunca mais sorrirá da mesma forma. Vejo amigos que nunca mais ouvirão as risadas de Nomsa e Sílvina. Vejo um lembrete constante de que a vida é frágil e que cada decisão que tomamos pode ter consequências imensuráveis.
Nomsa e Sílvina não voltarão, mas as suas memórias continuam a iluminar aqueles que as conheceram. Que a história delas nos ensine a valorizar cada instante, a respeitar a vida e a transformar as estradas em caminhos de encontros, não de despedidas. Que cada motorista lembre que, ao volante, carrega não apenas o seu destino, mas também os sonhos e as vidas de tantos outros. Porque não há perda maior do que aquela que poderia ter sido evitada.