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Gurué – Um amor vivido entre as exigências da tradição e as leis da natureza

Parte II

Acordar em Gurué deve ser uma das coisas mais maravilhosas que já me aconteceu na vida.

Depois de uma viagem cheia de solavancos, traições e desilusões, acordo com a vista de uma montanha larga, que se encontrava a namorar com uma nuvem gigante e cinzenta, tornando o seu cume invisível. À volta desta montanha, estendem-se verdes campos exuberantes, conectando-a a outras montanhas vizinhas, inspirando paz e tranquilidade ao meu coração.

Olhar aquelas colinas dava-me uma sensação terapêutica, porém, o melhor ainda estava por vir no longo dia que me esperava.

A fresca temperatura que se fazia sentir, o cantar dos pássaros que competia com o roncar de algumas motos, as vozes dos transeuntes, carregados de produtos agrícolas à cabeça ou às costas, que se apressavam em “ganhar” o mercado, foram as primeiras sensações que senti de Gurué.

A minha primeira aventura é, sem dúvida, conhecer e escalar o monte Namúli. Paulina Chiziane apresenta os montes Namúli como o centro da sua narrativa e da história de vários povos oriundos daquela região do país. É a esta história, que traz consigo traços de ancestralidade, que ambiciono me conectar. O trajecto entre a vila de Gurué até ao local a partir de onde se pode escalar o monte Namúli é de cerca de 15 quilómetros e o trajecto só pode ser feito, em segurança, de mota.

Durante os 90 minutos do nosso trajecto, em cima de uma moto-táxi, aos saltitões, descidas e subidas, navego dentro de uma parte do universo dos povos desta região da Zambézia. Perto do centro da cidade, encontramos verdes campos de chá e, dentro deles, várias pessoas.

Algumas destas colectavam o chá e outras podavam as plantações do chá, para que, em breve, novas folhas surgissem. São essas, as novas folhas, que são úteis para a produção de chá.

Para a minha surpresa, diferentemente das culturas comuns como o amendoim, o milho, o feijão, e etc., as plantações do chá não se removem para voltar a plantar novas. As plantas do chá que eu vi, são exactamente as mesmas que foram plantadas no início da década 40, pelo então governo português. Hoje, mais de 80 anos passados, as plantas continuam a produzir e a alimentar a indústria do chá, principal referência desta cidade. O tapete das plantações de chá estendem-se por quilómetros e quilómetros, percorrendo vales e colinas, até a vista não mais alcançar. É qualquer coisa incrível contemplar aquelas paisagens verdes.

Ainda no trajecto, cruzamo-nos com vários agricultores e moto-táxis que, entre montanhas, transportavam diversos produtos agrícolas para venderem no centro da cidade. O principal produto destes meses de Março e Abril é o feijão boer. Por cima das motas, vejo sacos e sacos de feijão sendo levados até à cidade para que de lá sigam em grandes camiões para Nampula, Quelimane e Maputo. “Este feijão daqui de Gurué é diferente dos outros feijões porque este não precisa de remédios para crescer, ele cresce sozinho. Basta a chuva daqui para ele crescer, aqui chove todos os dias, não tem hora para chover, tudo germina aqui” – Diz o motoqueiro da moto-táxi, que, além de piloto, é um guia muito conhecedor da região. 

Encontramos também peregrinos que se dirigiam a um local de culto, que se situa em uma das montanhas à volta, conhecido como “a santinha”. É um local criado há não mais de duas décadas pela missão católica Dohoniana, que está presente em Gurué desde 1947. Este local de culto é dedicado à santinha que permite com que haja quedas de água entre as montanhas. Um local muito aconchegante que inspira a reflexão e conexão divina.

Outros agricultores, simplesmente, caminhavam, conectando as suas montanhas “mãe” com outras montanhas vizinhas para realizar diversas actividades sociais. Subir e descer colinas parece não assustar nenhum morador desta região. Neste momento compreendo que o meu amor por Gurué não era platónico, era real. O amor e o cuidado com a natureza que pude testemunhar neste trajecto, os caminhos verdes entre montanhas, árvores enfileiradas como se abrissem caminhos para os transeuntes, as plantações de banana, milho, cana-de-açúcar, mandioca, inhame, ananás, beringela… etc. que se estendem entre as colinas, a visão que se pode ter de um horizonte montanhoso que, como disse o meu guia, alcança até aos distritos de Namarroi e Milange, na Zambézia, e o distrito de Malema, em Nampula, fizeram-me voltar a sonhar com um mundo verde e sustentável onde a natureza é bem cuidada por se entender que esta faz parte e é indispensável para a existência humana. Eu estava realmente apaixonado por Gurué.

Depois de 90 minutos, chegamos ao local por onde poderíamos escalar o monte Namúli. Antes de escalarmos, é preciso respeitar as exigências da tradição. Só se escala a montanha mediante a autorização de uma Rainha que reside ao pé da montanha. Para obter essa autorização, é preciso levar oferendas a ela e, por seu turno, ela deve realizar uma cerimónia de comunicação com os ancestrais a informar-lhes que viajantes vão escalar o monte. Caso algum “escalador” decida ignorar este ritual, a sanção prevista é severa: escalar a montanha será a última coisa que essa pessoa vai fazer na vida, pois de lá não vai regressar.

Para o meu azar, a Rainha não estava presente. Ela encontrava-se a conduzir as cerimónias fúnebres do seu sobrinho, que havia falecido recentemente. E agora, o que faço? Nada!

Simplesmente nada, pois a Rainha não tem substituto e a sua ausência era imprevisível. Além disso, a região onde reside é remota, situada a uma altitude considerável, sem rede de telefonia móvel que permitisse uma chamada para avisar da nossa chegada.

Tradição é tradição e tem de se respeitar. Dei meia volta com alguma decepção na alma, mas com a mente e o coração em paz. O monte Namúli pode até ser apenas um monte que gera curiosidade exótica para mim, porém, para aquele povo ao redor da montanha, aquele é um local sagrado, é um local de conexão com a ancestralidade, é ali onde eles invocam os seus deuses. Respeitar as tradições por eles impostas é aceitar que o país em que vivemos é laico e que cada povo tem direito de viver e exercer as suas crenças dentro do seu território. A minha paixão por Gurué só crescia.

Ao retornar à sede da cidade, pude conhecer uma cidade tranquila, com maior parte das suas construções datadas da época colonial (como todas as cidades moçambicanas), limpa, ordeira e com um ar muito peculiar. Surpreendeu-me pela positiva saber que o cinema da cidade (construído no tempo colonial) ainda é casa de transmissão de filmes aos finais de semana.

Nunca tinha encontrado algo do género em nenhuma das cidades moçambicanas que visitei.

Tive ainda a oportunidade de, mais uma vez, entre solavancos e pedregulhos, subir até à nascente do gigante Licungo. Água fria sobressai à grande pressão das montanhas algures em Gurué e dá vida a um dos maiores rios da região Centro do país que, todos os dias, dá e sustenta a existência de centenas de comunidades ao longo dos seus 350 quilómetros que o separam da sua nascente, em Gurué, até a sua foz no Oceano Índico.

É na nascente do Rio Licungo que paro, observo as colinas, as árvores, o verde, ouço o som das águas a caírem pela primeira vez sobre as pedras, ouço o chilrear dos pássaros, fecho os olhos, sinto o som da natureza, sinto a origem da humanidade, e pergunto-me: onde e quando é que o homem se perdeu na natureza e passou a venerar as cidades? É aqui onde termina a minha aventura por esta linda e mística cidade que, de certeza, ainda guarda muitos segredos por revelar. Talvez seja o prelúdio de uma paixão que transcende um final de semana. Quem sabe, um dia, escreveremos juntos novos capítulos desta história. Um romance? Quem sabe?

 

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