Da Palavra Enfeitiçada ao Poder do Livro

Como comecei a gostar de livros
Geralmente, a memória da infância, onde as primeiras sementes da imaginação são lançadas, guarda os rastros luminosos dos primeiros encontros com a palavra escrita. Para mim, este despertar ocorreu ao som das histórias contadas pelo meu avô, um contador de palavras que transformava o quotidiano em aventura e o passado em lição. A estas narrativas fundadoras, acrescentaram-se as cores vibrantes e as personagens singulares dos livros da “Rua Sésamo” e a banda desenhada, onde a imagem e a palavra fundiam-se, revelando a gramática secreta da narrativa visual.
Nessa fase inicial, a apreensão do livro não se limitava ao seu conteúdo semântico; antes, estava centrada na sua materialidade, na sua presença física como objecto. Cada volume, com o seu característico cheiro, a textura das suas páginas e o peso específico na mão, despertava uma atmosfera de mistério. Na verdade, para a criança que lê um livro, todos eles são, na sua essência, “objectos enfeitiçados”, portais para dimensões desconhecidas, uma promessa de mundos ocultos sob as suas capas.
Como me iniciei na escrita?
O passo seguinte, quase inevitável para os que se deixam envolver pela magia das histórias, foi o desejo de participar [activamente] desse processo de criação de mundos. Inicialmente, essa participação começou de maneira mais simples: a criação das minhas próprias narrativas, contadas com a mesma vivacidade com que ouvia as do meu avô, numa tentativa de prolongar o encantamento e oferecer, em troca, outras paisagens.
Com o decorrer do tempo, esta vontade de contar evoluiu (gosto de pensar que sim) para a poesia, um exercício de condensação da emoção e da ideia num ritmo e numa melodia próprios. Depois, a participação em concursos literários, ainda que com a insegurança típica da juventude, foi uma primeira tentativa de lançar as minhas próprias criações ao encontro de outros olhares, de testar o seu valor (venceria, assim, o 3.º lugar no Concurso de Ficção Narrativa João Dias, em 2009).
Descobri, assim, que a escrita não somente era como uma forma de expressão individual, mas uma ponte para o outro, uma maneira de estabelecer uma comunhão de sentimentos e de experiências. Escrever é, sobretudo, uma forma de estar com os outros, de partilhar fragmentos da nossa essência, de oferecer ao mundo a nossa própria interpretação da realidade. É, em última instância, a concretização das nossas crenças e a projecção da nossa visão do mundo, um acto de ousadia de querer brincar de Deus.
Por que é importante ler?
A questão da relevância da leitura é fundamentada por uma série de razões, cada uma delas a iluminar uma faceta essencial do seu impacto na formação do indivíduo e da sociedade.
(a) Em primeiro lugar, a leitura é uma das formas de acesso à cidadania plena. Através do contacto com a palavra escrita, o homem aprende a compreender o mundo, analisar criticamente a informação, formar opiniões e participar no debate público. A leitura emancipa o cidadão, munindo-o das ferramentas intelectuais necessárias para exercer os seus direitos e deveres de forma consciente e responsável.
(b) A leitura é, de certa forma, um acto de libertação. Permite-nos transcender os limites do quotidiano, viajar por tempos e espaços distantes e experimentar vidas e perspectivas distintas. Ao mergulharmos nas páginas de um livro, libertamo-nos das amarras da nossa realidade imediata, expandindo os nossos horizontes e enriquecendo a compreensão da condição humana. A leitura também desenvolve a capacidade de expressão livre, permitindo-nos reconhecer na escrita de terceiros a legitimidade das nossas próprias palavras e incentivando-nos a expressar as nossas ideias e sentimentos.
O hábito de ler, sem importar o género ou o tema, é de importância inquestionável. Não me refiro aqui à leitura fragmentada e superficial das mensagens instantâneas ou dos posts. Falo da imersão profunda nos contos, romances, poesias, etc., aventuras que expandem a imaginação. É esta leitura consistente e absorvente que nutre o intelecto e a sensibilidade.
(c) A leitura tem algo de misterioso em si, uma alquimia peculiar que transforma a palavra escrita em experiência viva. Como evoca uma imagem poética, a leitura acontece quando “uma palavra que faz cócegas nos ouvidos”, despertando em nós ressonâncias inesperadas, emoções subtis e novas formas de compreender o mundo.
(d) Por fim, a leitura não se limita à aquisição de informações ou ao entretenimento passivo.
“É preciso ler para ser”, para nos construirmos como pessoas (sujeitas de direitos e deveres), capazes de pensar, de empatia e de compreender a nossa própria humanidade. A leitura é crucial para a contínua construção do ser.
O livro é importante?
A importância do livro, enquanto objecto físico que transporta consigo séculos de conhecimento e de imaginação, permanece inabalável (“os dinossauros não sabiam ler e estão extintos, será coincidência?”). Da mesma forma, as bibliotecas, esses “templos do saber e da imaginação”, continuam a desempenhar um papel crucial na democratização do acesso à cultura e à informação.
A relevância da literatura infantil para o desenvolvimento da criança é indiscutível, estudada e documentada. Os livros bem concebidos estimulam o gosto pela leitura, a imaginação, a criatividade e oferecem ferramentas para compreender o mundo e formar o carácter. Um bom livro infantil transcende a sua aparente simplicidade e desafia as crianças e os adultos a reflectir sobre questões profundas e universais.
Num mundo cada vez mais digital, a biblioteca física, por sua vez, preserva a importância do encontro com o livro enquanto objecto tangível e promove um ambiente propício à concentração e à imersão no universo da leitura.
Para concluir, na semana em que se celebra mundialmente o livro e os direitos do autor, é crucial reconhecer a relevância do livro e da leitura, reforçando os pilares que sustentam o seu acesso, uma vez que é na “palavra enfeitiçada” que reside uma das mais poderosas ferramentas para a formação de indivíduos mais livres, críticos e humanos.
* É professor, escritor e editor. O presente texto é uma versão escrita de uma palestra apresentada no Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, 23 de Abril de 2017, na Escola Secundária das Acácias, Maputo.