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O Espírito de Paz e Harmonia na Bola de Trapos (Xingufo)

Uma pequena bola de trapos, também conhecida por xingufo em algumas regiões de Moçambique, fez parte da diplomacia do Papa Francisco, no seu pontificado. Este xingufo que elevou para os pedestais mais visíveis este país, serviu de chave mestra para lendas do futebol mundial como Eusébio e Matateu, mas, também, de tantos outros “Pelés” que o mundo conheceu.

O xingufo representa muito mais que uma bola improvisada. Essa pequena amostra do globo, algumas vezes disforme, porém, com toda a arquitectura circular, converteu-se em símbolo de resistência, criatividade e paixão pelo mundo da arte do futebol e de tantos outros desportos que apaixonam milhões, enlouquecem os obstinados e servem, simultaneamente, como a primeira actividade lúdica de milhões de crianças em todos os continentes.

Papa Francisco, esse impetuoso homem, designava por pelota, nome hispânico para bola de trapos, também na sua Argentina e na América latina, do qual foi o mais consagrado representante. Falava de forma empolgada e com paixão invulgar desta pelota, pois, também ele jogou com estas bolas com os seus amigos de infância e tantos outros. Os xingufos se converteram na expressão artística de juntar peúgas velhas, esponjas fora de uso, plásticos e outros restos de roupas usadas. 

Quando em Setembro de 2019, o Papa Francisco esteve em Moçambique, na sua primeira e última visita, coincidente com o auge de uma campanha política eleitoral, nem por isso isenta de polémica, disfuncionalidades e contestações, ele estendeu um convite para um diálogo matutino na residência do Núncio Apostólico, onde se hospedou. O xingufo foi meio que o guia da nossa conversa.

Naturalmente que sua abordagem, ainda que santificada sobre o xingufo e no primeiro dia oficial da sua visita, reservava outras temáticas. Não me recordo de alguma vez ter tornado público o teor destas conversas, porque se tratava de uma conversa reservada e que não carecia de qualquer tipo de divulgação.

A bem da verdade, eu também estava desconfortável por ter sido escolhido e convidado para uma visita privada e por ter tido a honra de o acompanhar no café matinal e com sabor a espiritual. Para além do xingufo, Papa Francisco pretendia explicar a criação da Universidade do Sentido, de que ele estava profundamente empenhado e, na circunstância, preparava uma conversa que teria lugar no Vaticano, em Maio de 2020.

No seu “portunhol”, muito mais compreensível do que o nosso português, Papa, ainda com um xingufo em suas mãos, falou sobre colocar a pessoa humana no centro do processo educativo. O foco assentava na promoção de uma educação proactiva que promovesse a escuta, a criatividade e diálogo entre diferentes culturas e gerações. Na sua visão, incentivava a busca pelo sentido da vida e das coisas. A gestão desta universidade seria feita por uma fundação por si criada, denominada Scholas Ocurrentes.

Mesmo sem muitos detalhes sobre o projecto futuro da Universidade do Sentido — idealizada para ser abrangente e aberta — a instituição foi criada em 15 de Agosto de 2023, num contexto em que a pandemia já estava praticamente erradicada, por meio de um quirógrafo. Na sua missão, essa Universidade deveria responder à crise global vivida pela humanidade. A Universidade do Sentido tem sido gerida pelo movimento internacional Scholas Occurrentes, com sede no Vaticano.

Como parte de sua estratégia operacional, a universidade adoptou um modelo descentralizado, estabelecendo micro sedes em universidades públicas e privadas já existentes ao redor do mundo. Dessa forma, a Universidade do Sentido se insere e actua dentro de um movimento global, intergeracional, multicultural e inter-religioso, promovendo a educação como instrumento de encontro, diálogo e transformação.

Moçambique, por meio da Universidade Pedagógica de Maputo, participou em diversas reuniões preparatórias, onde partilhou parte da sua experiência formativa — uma experiência marcada pela formação de jovens provenientes de diferentes famílias moçambicanas, distribuídas por todos os distritos e, em grande parte, pelas localidades do país.

Desta forma, a Universidade quebrava o dogma e o mito de que o ensino superior apenas serviria às elites e ao capitalismo emergente. A Universidade Pedagógica de Maputo se converteu, igualmente, num espaço onde famílias e moçambicanos com poucas posses e, muitas vezes, sem recursos financeiros tiveram uma oportunidade de fazer o ensino superior.

A missão de São Benedito dos Muchopes, em Manguze, província de Gaza, tem sido um bom exemplo de envolvimento social e comunitário, tendo ajudado a dinamizar a produção de bolas de trapos. Estas eram as bolas que o Papa solicitou que continuássemos a produzir e que pudessem ser enviadas para o Vaticano. Ele, pessoalmente, se encarregaria de fazer chegar às mãos de ilustres figuras e que, posteriormente, iriam contribuir para que os xingufos chegassem às mãos de pessoas beneplácitas e altruístas, que ajudariam num “fundraising” para ajudar crianças carentes.

Esta missão em Manguze é dirigida pelo pároco João Gabriel Arias, de nacionalidade argentina, que foi o responsável por juntar e enviar para Papa Francisco os primeiros exemplares de bolas de trapo de Moçambique que chagaram ao Vaticano. Papa Francisco, por sua vez, fez com que estas bolas, poucas, chegassem às mãos ou até aos pés de Leonel Messi, esse astro do futebol argentino e mundial, que simpatizou com o projecto e colocou em sua agenda a comunidade de Manguze como uma das suas prioridades e projectos favoritos. Messi enviou para a comunidade das escolas da região de Manguze uma papa fortificada, que ajuda na alimentação e redução dos índices de desnutrição crónica ou aguda.

Moçambique hospedou alguns outros importantes projectos de produção de bolas de trapo. Em 2009, com apoio do Brasil, foi lançada uma fábrica de bolas como parte do programa designado “pintando a cidadania”. Esta era a forma pragmática de produção de diversos tipos de bolas, desde as sintéticas até as de trapo, para as diferentes modalidades, mas eram, na essência, uma forma de valorizar a cultura e tradição local. É impossível esquecer a exposição que apresentou bolas de trapos e outras conhecidas como “as magias do pano” — uma verdadeira celebração de identidade, que atravessa gerações e continua viva em Moçambique, estendendo-se, de alguma forma, pelos cinco continentes.

A conversa com Papa Francisco decorreu entre sorrisos e muitos questionamentos. O Xingufo que voltamos a oferecer, ora ficava nas suas mãos, ora ia para uma mesa bem próxima — num gesto quase ritual, carregado de simbolismo. Foi um momento descontraído, porém, soberbo e muito profundo. Uma verdadeira lição sobre a escuta: como num confessionário onde se revelam pecados, mas onde não há lugar para culpa ou culpados — apenas para o perdão em abundância e um caminho aberto para a clemência e o entendimento. O verdadeiro caminho do sentido e da convergência.

Recordo esse 5 de Setembro como o diálogo mais iluminado que já vivi. Era a minha pequenez diante desse homem universal, impetuoso e sereno, cuja presença alternava entre o entusiasmo apaixonado e uma autoridade serena que não deixava ninguém indiferente. Sem que tivesse dado conta, eu estava sentado diante da própria paz que não experimentei nunca no nosso jubileu.

Nesta hora de partida, muito vai ser dito e escrito sobre a sua personalidade, sobre os seus discursos que, em tempos, pareceram controversos diante de uma igreja que permanece refém de muitas das suas ideias e crenças originais. Ele viveu nessa fronteira entre um pontificado que pretendia ajustar-se às verdades da vida, mas, que ao mesmo tempo, revelou os segredos mais incómodos pelos quais o cristianismo pode ter passado.

Nos últimos momentos, ao lado da verdade, dedicou-se com fervor à defesa dos desamparados, combatendo a pobreza, as guerras e a ganância, e se opôs ao colapso do mundo diante da vontade dos poderosos. Parte um homem que transmitiu o espírito de paz, união, harmonia, humildade e solidariedade aos mais vulneráveis Aquele que soube transmitir os valores da tolerância se junta a Deus. Nenhuma tristeza tomará nossos corações, pois ele fez o melhor que pôde em um mundo ainda governado pela maldade e pela ambição. A nossa Universidade do Sentido e este xingufo que ele tanto advogou será um legado para todo o sempre.  

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