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A hora maconde: algumas provocações

Por: Luís Cezerilo

A história se passa em uma companhia militar em Tambara, um cenário que simboliza a tensão constante entre o domínio colonial e a resistência moçambicana.

A escolha desse espaço não é aleatória: Tambara, como diversas outras regiões de Moçambique, foi palco de confrontos directos e indirectos entre o exército português e os guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).

A obra, insere-se no género da narrativa histórica, abordando um dos períodos mais marcantes da História de Moçambique: a colonização portuguesa e a luta de libertação nacional.

O eu lírico, constrói uma narrativa que transcende o relato histórico convencional, oferecendo uma reflexão profunda sobre a guerra colonial em Moçambique e os seus impactos psicológicos e emocionais nos soldados que a vivenciaram.

Ao centrar a sua história no ambiente de Tambara, humaniza o conflito, afastando-se das grandes batalhas e discursos ideológicos para explorar a experiência subjectiva dos soldados – as suas angústias, os seus medos, as suas saudades e sobretudo o desejo contraditório de lutar e fugir ao mesmo tempo.

O livro mostra como a ocupação portuguesa não apenas impôs uma estrutura de dominação política e económica, mas também gerou divisões internas entre os próprios soldados, muitos dos quais questionam o real propósito da guerra que travam.

A obra destaca, assim, o esgotamento moral do colonialismo, expondo as suas contradições e o inevitável colapso desse sistema opressor.

Um dos pontos marcantes é a complexidade emocional dos personagens. O medo do desconhecido, a nostalgia da vida deixada para trás e a incerteza sobre o futuro formam um mosaico de sentimentos contraditórios.

Os soldados portugueses estão imersos em um ambiente onde a violência não é apenas física, mas também psicológica. O medo da morte, a paranóia da traição, a incerteza sobre o próprio futuro criam um labirinto mental do qual poucos conseguem escapar.

A guerra aqui não é heróica, nem gloriosa. Pelo contrário, é retractada como uma experiência de dissolução da identidade, onde os soldados oscilam entre a brutalidade necessária para sobreviver, a nostalgia da vida que deixaram para trás e o sonho de um futuro incerto.

É um olhar que dialoga com as reflexões de Paul Fussell na sua obra, The Great War and Modern Memory (1975), quando afirma que: a guerra, mais do que um confronto entre exércitos, é um estado de espírito que reconfigura a percepção do tempo, do espaço e da própria humanidade. Fussell (1975) Outrossim, a obra evidencia a fragilidade das relações humanas em tempos de guerra. A desconfiança mútua entre os soldados mostra que o inimigo nem sempre está apenas do outro lado do combate, mas também dentro do próprio grupo. Esse clima reflecte a instabilidade emocional dos combatentes, que vivem sob o espectro constante da violência e da morte.

Mesmo em meio à brutalidade da guerra, o livro resgata elementos essenciais da humanidade: o amor e a saudade.

A lembrança da mulher amada, os ecos de uma vida distante, funcionam como âncoras emocionais tornando-se um refúgio emocional para os soldados, funcionando como um elo com a vida antes do conflito e como um fio de esperança para o futuro.

Esse contraste entre o horror da guerra e a ternura do amor confere profundidade à narrativa, humanizando os personagens e tornando os seus dilemas ainda mais tocantes.

Essa dualidade entre o amor e a destruição reforça a tese de que, em cenários de violência extrema, os laços afectivos são não apenas refúgios, mas também formas de resistência e superação.

Socorro-me das ideias de Svetlana Alexievich, na sua obra A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1985), para sustentar a afirmação do paragrafo anterior, onde a autora argumenta que, nos relatos de guerra, as emoções e as memórias pessoais são tão cruciais quanto os acontecimentos militares.

Panguana, segue essa linha ao mostrar que, para muitos soldados, a verdadeira luta não era contra os “turras”, mas contra o esquecimento e a desumanização que a guerra lhes impunha.

Concomitantemente, a Hora Maconde, expõe as contradições morais da guerra colonial, onde alguns soldados não acreditam no conflito, veem-se como peões de um império decadente, lutando contra um inimigo que, em muitos aspectos, parece ter mais legitimidade do que eles próprios.

O desejo de fuga, tanto física quanto emocional, permeia a narrativa, mostrando que, para muitos, a sobrevivência significava mais do que escapar das balas – significava também preservar a sanidade e a humanidade.

Esse dilema lembra-me as reflexões de Erich Maria Remarque, na sua obra: Nada de Novo no Front (2023), onde os soldados, mesmo armados e treinados para matar, são apresentados como vítimas de um sistema que os engoliu sem que tivessem escolha.

Marcelo Panguana insere essa perspectiva no contexto colonial, expondo a fragilidade da narrativa heróica construída pelo regime português sobre a “guerra justa”.

Notemos, a Hora Maconde não é apenas um romance sobre a guerra em Moçambique – é um estudo sobre a condição humana diante da violência, da perda, da esperança e da incerteza.

Ao evitar maniqueísmos e discursos rígidos, o autor constrói uma obra que se insere na tradição das grandes narrativas de guerra, mas com um olhar profundamente nacional, entenda-se, moçambicano.

O seu texto é ao mesmo tempo lírico e brutal, reflexivo e implacável, uma obra que nos lembra que, na guerra, a maior batalha talvez seja contra o esquecimento e a transformação do homem em máquina.

Com uma narrativa densa e envolvente, Hora Maconde consegue capturar a complexidade da guerra de libertação moçambicana, indo além da simples oposição entre colonizadores e colonizados. O livro mergulha na psique dos personagens, explorando medos, esperanças e contradições que tornam a história ainda mais realista e impactante.

Ao mesclar o horror da guerra com a delicadeza do amor e da saudade, a obra não apenas documenta um período histórico crucial, mas também questiona os efeitos profundos da colonização e da guerra na vida daqueles que nela estiveram envolvidos.

 

Bem hajas Marcelo.

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